O que é Pecado? A Palavra que Mudou de Sentido ao Sair do Hebraico

No hebraico bíblico, a palavra traduzida como “pecado” é ḥaṭṭāʾt (חַטָּאת), derivada do verbo ḥāṭā’ (חָטָא), que literalmente significa “errar o alvo” — como um arqueiro que dispara a flecha e não acerta o centro. O termo não carrega, originalmente, a carga moral de “culpa” ou “corrupção”, mas descreve uma falha de direção, um desvio do caminho certo.

Nos manuscritos do Tanakh (Bíblia Hebraica), essa noção aparece mais de 500 vezes, em contextos variados: desde transgressões rituais até equívocos éticos. Já no grego da Septuaginta, tradução judaica feita em Alexandria no século III a.C., ḥaṭṭāʾt foi vertido por hamartía (ἁμαρτία), termo usado pelos filósofos gregos para designar “falha de juízo”. Assim, o sentido moral abstrato começou a nascer — o pecado deixou de ser “errar o caminho” e passou a ser “violar uma lei”.

Com o tempo, as versões latinas (como a Vulgata) solidificaram o termo peccatum, associado a “culpa”, “ofensa”, “crime contra Deus”. O vocábulo se moralizou e se distanciou da ideia prática e relacional do texto hebraico original.

O pano de fundo cultural: de desvio de rota a ofensa divina

Na cultura hebraica antiga, a vida era um caminho (derek, דֶּרֶךְ), e andar “no caminho de YHWH” significava alinhar-se com a ordem divina do mundo. “Errar o caminho” era desalinhamento, não necessariamente perversão. Essa mentalidade aparece em textos como Salmo 119 (“ensina-me o teu caminho”) e Provérbios 14:12 (“há caminho que ao homem parece direito”).

Quando o mundo helenista reinterpretou o termo, influenciado pela lógica grega da “lei e transgressão”, o foco mudou: o erro se tornou delito. Essa transposição cultural transformou a teologia judaica de responsabilidade comunitária em uma teologia individual de culpa. No contexto romano, onde o direito era central, o pecado passou a exigir “pena”.

A arqueologia e os estudos de cultura semítica revelam que ḥaṭṭāʾt tinha também sentido ritual: a “oferta pelo pecado” era literalmente a “oferta pela falha”, um meio de restaurar o equilíbrio entre o homem e Deus. O ato era corretivo, não punitivo. O “sacrifício” não visava apaziguar uma divindade irada, mas reintegrar o ser humano ao caminho correto — algo mais próximo de cura do que de condenação.

O eco moderno: culpa, neurociência e responsabilidade

No mundo contemporâneo, “pecado” virou sinônimo de “prazer proibido” ou “crime moral”. Mas o conceito hebraico é muito mais psicológico e realista: todos erramos o alvo. Em termos modernos, poderíamos dizer que o pecado é um desvio cognitivo ou comportamental — uma disfunção de orientação ética e relacional.

A neurociência e a psicologia moral descrevem algo análogo: falhas de julgamento e autocontrole decorrentes de impulsos, crenças distorcidas ou dissonância cognitiva. Assim, a antiga ideia hebraica parece antecipar a noção moderna de erro de trajetória, não de essência maligna.

A leitura bíblica, portanto, propõe uma ética de reorientação contínua — “arrepender-se” (hebraico shuv, voltar, retornar) é literalmente “fazer meia-volta”, não autoflagelar-se. É uma ação, não um sentimento. A Bíblia não chama o ser humano de mau, mas de mal direcionado.

Fechamento provocativo

A tradução transformou “errar o alvo” em “ofender a Deus”, e com isso a palavra “pecado” perdeu sua dimensão existencial e ganhou um peso jurídico. Retomar o hebraico ḥaṭṭāʾt é redescobrir que a Bíblia não fala de condenação, mas de retorno ao caminho.

Ler o texto no original liberta o leitor da moralização tardia: o pecado não é o fim — é o diagnóstico que chama à correção de rota.

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