Eva: a primeira mulher entre manuscritos, mitos e arqueologia

Quem foi Eva? No hebraico bíblico: Ḥavvah (חַוָּה), nome que deriva de ḥāy (חַי = vida). No relato do Gênesis (Bereshit 2–4), ela surge como a primeira mulher, formada a partir de Adam. Mas por trás do texto massorético, das versões gregas e aramaicas, e dos paralelos mesopotâmicos, está uma trama complexa de transmissão textual e simbólica.

Essa investigação confronta manuscritos antigos, léxicos originais e achados arqueológicos para compreender se Eva é apenas mito fundacional ou memória codificada da antiguidade.

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1. O texto original: Bereshit 2–3

Nos manuscritos hebraicos do Texto Massorético (TM), a criação da mulher aparece em duas etapas:

  1. Bereshit 2:22 – “E YHWH Elohim construiu (וַיִּבֶן, wayyiben) a costela (צֵלָע, ṣēlāʿ) que tomou do Adam em mulher”.

    • O termo ṣēlāʿ não significa necessariamente “costela”. Em hebraico bíblico pode designar “lado, parte lateral” (cf. Êxodo 25:12). ⚠️ Sujeito a verificação.

  2. Bereshit 3:20 – “E o Adam chamou o nome de sua mulher Eva (Ḥavvah), porque ela foi mãe de todos os viventes (כָּל־חָי)”.

No Pentateuco Samaritano e nos Manuscritos do Mar Morto (DSS, 4QGen-Exod, séc. III a.C.–I d.C.), a passagem é essencialmente idêntica, sem variantes significativas.

Na Septuaginta (LXX, grego, séc. III-II a.C.), a tradução de ṣēlāʿ é πλευρά (pleura, lado, flanco), confirmando a ambiguidade.

2. Nome e significado: חַוָּה (Ḥavvah)

  • Etimologia: De ḥāy/ḥayyâ (vida, vivente). A forma Ḥavvah significa “a que dá vida / vivente”.

  • Strong’s: H2332

  • Léxicos: BDB, HALOT confirmam associação com “vida”.

  • No grego da LXX: Ζωή (Zōē = Vida).

O nome não é apenas título pessoal, mas um conceito de origem vital: Eva representa a fonte da continuidade da humanidade.

3. Paralelos mesopotâmicos

Textos anteriores ao Gênesis trazem ecos da criação da mulher:

  • Enki e Ninhursag (sumério, ca. 2000 a.C.) – a deusa Ninti (“Senhora da Costela” e também “Senhora da Vida”) cura a costela do deus Enki. A coincidência entre ti = “costela” e ti = “vida” sugere jogo de palavras.

    • Convergência B: Evidência linguística parcial de paralelismo.

  • Epopéia de Gilgamesh (tabuletas XI, séc. XVIII a.C.) – a mulher é mediadora entre deuses e humanidade, associada à vida e à mortalidade.

Esses paralelos sugerem que o relato de Eva foi moldado num ambiente literário mesopotâmico, onde a figura feminina tinha papel vital na mediação da vida e do destino humano.

4. Leitura crítica: erro ou metáfora?

O termo “costela” pode ter reduzido um símbolo mais profundo:

  • ṣēlāʿ = lado/parte → Eva não seria criada de um osso, mas do “lado” de Adam, implicando paridade ontológica.

  • A tradução latina de Jerônimo na Vulgata (séc. IV d.C.)de costa eius (“da sua costela”) – fixou a leitura que dominou o Ocidente.

Esse deslocamento interpretativo moldou séculos de visão da mulher como “derivada” ou “secundária”.

5. Evidência arqueológica

  • Iconografia suméria e acádia: Selos cilíndricos mostram deuses criando pares humanos a partir de uma figura central.

  • Ossuários judaicos do séc. I d.C. trazem nomes femininos derivados de Ḥavvah, atestando que Eva era referência histórica-cultural.

  • Qumran (4QInstruction, Sabedoria) – textos sapiencais fazem eco à “mulher primeira” como figura didática.

6. Origem da distorção

A leitura “costela” consolidou-se no latim eclesiástico e, depois, nas traduções vernáculas (Lutero, King James, Almeida). Isso transformou Eva numa narrativa de subordinação, em vez de parceria.

O peso cultural da tradução moldou códigos legais e teológicos de gênero por mais de 1500 anos.

7. Impacto atual

O mito de Eva atravessou fronteiras religiosas e culturais, justificando estruturas sociais e visões da mulher. Mas o retorno aos manuscritos originais abre a possibilidade de reler Eva como “par lateral”, mãe da vida, não apêndice de Adam”.

Esse resgate tem implicações não só para a crítica bíblica, mas também para debates contemporâneos sobre identidade e igualdade.

Conclusão

Eva não é apenas personagem mítica. É a sedimentação de memórias antigas, jogos de palavras mesopotâmicos, escolhas tradutórias e disputas teológicas. Ao recuperar seu nome original – Ḥavvah, a que dá vida – a primeira mulher emerge não da costela, mas do lado da humanidade, como espelho vital de paridade.


Glossário

  • Ḥavvah | חַוָּה | Eva | “Vida, Vivente” | Strong’s H2332 | Gn 3:20

  • ṣēlāʿ | צֵלָע | lado/costela | Strong’s H6763 | Gn 2:22

  • Adam | אָדָם | humano/terra | Strong’s H120 | Gn 2:7

  • Zōē | Ζωή | Vida (grego) | — | LXX Gn 3:20

  • Ninti | Sumério | Senhora da Vida/Costela | — | Mito de Enki e Ninhursag

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