Quem era o “Adão” do Segundo Templo? Revisão filológica

Nos escritos mais antigos do Tanakh, especialmente em Bereshit (Gênesis), “אדם” (’adam) é utilizado tanto como nome próprio quanto como substantivo comum — “o ser humano”. Essa ambiguidade semântica, presente nos manuscritos massoréticos, é explorada de forma radical pelos autores do período do Segundo Templo, que ressignificam “Adão” como figura arquetípica, coletiva e, em alguns casos, até angelomórfica.

O período entre o exílio babilônico e a destruição do Segundo Templo viu uma explosão de literatura apocalíptica e sapiencial — como os livros de Enoque, Jubileus, Ben Sira e os Manuscritos do Mar Morto — onde “Adão” deixa de ser apenas o primeiro homem e passa a ser um símbolo escatológico, sacerdotal e até messiânico.

Nos Manuscritos do Mar Morto, Adão é proto-sacerdote, não apenas o primeiro homem

Nos textos qumrânicos, especialmente em 4Q504 (“Palavras de Moisés”) e 4Q381 (“Salmos de Davi”), Adão é descrito como alguém que recebeu revelações, funções sacerdotais e até uma proximidade com o plano celestial. Não há foco na queda ou no pecado — aspectos mais enfatizados em textos pós-templo, como no cristianismo paulino —, mas sim na função cósmica do primeiro humano.

Em 4Q522, Adão é até associado à criação dos anjos, mostrando uma leitura mística e quase litúrgica de sua figura.

Adão, nesse contexto, é o prototipo de Israel, o primeiro a receber a Torá celeste, o responsável por manter a ordem divina na Terra.

O Enoque Etíope revela um Adão pré-mosaico e angelificado

No chamado 1 Enoque, especialmente nos capítulos do “Livro das Parábolas” (capítulos 37–71), a figura do Filho do Homem é explicitamente paralela a Adão, mas elevada à condição pré-existente.

Isso sugere que, para certos círculos judaicos, havia uma continuidade ou até sobreposição entre Adão e o Filho do Homem — não no sentido cronológico, mas ontológico. Ambos representam a humanidade ideal, mas o segundo (o Filho do Homem) é a versão restaurada, o novo Adão.

Em Ben Sira e Jubileus, Adão é figura de autoridade moral e tipológica

O livro de Ben Sira (Eclesiástico), datado do século II a.C., faz uma espécie de “galeria dos justos” — e nela, Adão aparece ao lado de patriarcas e reis, mas sem ser o foco negativo da transgressão. Já no Livro dos Jubileus, Adão é um personagem centralizado no sacerdócio e nos ciclos festivos, o que confirma a tese de que a tradição adâmica foi apropriada pelas escolas sacerdotais.

Essa imagem do Adão justo, patriarcal e tipológico contrasta fortemente com a teologia da queda original, surgida mais tarde.

Adão em Daniel e nos oráculos apocalípticos: figura escatológica

No livro de Daniel, embora Adão não seja citado diretamente, a ideia de um "bar enash" (filho de homem) que recebe domínio eterno é uma construção que ecoa a figura do “homem ideal”, superior ao Adão caído. Isso indica uma transição conceitual: do Adão terrestre ao Adão celestial, como ideal escatológico.

Essa transição seria explorada à exaustão nos escritos posteriores, como em Paulo e na literatura gnóstica, mas suas raízes estão claramente no Segundo Templo.

A Septuaginta já introduz a ideia de Adão como nome próprio fixo

Nos manuscritos da LXX, a palavra “ἀδὰμ” é transliterada e tratada como nome próprio em quase todas as ocorrências, o que indica que, já no século III a.C., o conceito estava se fixando como personagem singular e não coletivo. Isso abriu caminho para as leituras tipológicas de Adão como progenitor e precursor de um novo tipo humano, como os evangelhos aplicariam posteriormente a Yeshua.

O Novo Testamento e o retorno ao “Adão do Segundo Templo”

A teologia paulina, sobretudo em Romanos 5 e 1 Coríntios 15, apresenta uma contraposição entre o primeiro Adão (alma vivente) e o último Adão (espírito vivificante). Esse contraste só é possível porque Paulo herda e adapta as concepções do Segundo Templo — onde Adão não é apenas o pecador original, mas modelo ontológico da humanidade.

Essa transição — de Adão terreno para Adão celeste — é a chave para entender a escatologia paulina e a identidade messiânica de Yeshua.

Qual o impacto dessa revisão na mensagem de Yeshua?

Yeshua não é apenas o “último Adão” no sentido moral ou teológico. Ele representa, à luz da literatura do Segundo Templo, a restauração da humanidade ideal, a recapitulatio de tudo que foi perdido no projeto original de “adam” — termo que significava humanidade inteira.

Sua missão não era simplesmente redimir um pecado, mas restaurar a identidade humana celestial, a vocação sacerdotal, o domínio justo e a ligação direta com Elohim — características atribuídas ao primeiro Adão nos textos qumrânicos e enoquianos.


Bloco Técnico

Texto base:
1 Coríntios 15:45
οὕτως καὶ γέγραπται· Ἐγένετο ὁ πρῶτος ἄνθρωπος Ἀδὰμ εἰς ψυχὴν ζῶσαν· ὁ ἔσχατος Ἀδὰμ εἰς πνεῦμα ζωοποιοῦν.

Transliteração (SBL):
houtōs kai gegraptai: Egeneto ho prōtos anthrōpos Adam eis psychēn zōsan; ho eschatos Adam eis pneuma zōopoioun.

Tradução literal interlinear:
Assim também foi escrito: Tornou-se o primeiro homem, Adão, alma vivente; o último Adão, espírito vivificante.

Análise morfológica:

  • Ἐγένετο (aor. médio de γίνομαι) – “tornou-se”

  • πρῶτος ἄνθρωπος – “primeiro homem”

  • ψυχὴν ζῶσαν – “alma vivente” (citação direta de Gênesis 2:7 LXX)

  • ἔσχατος Ἀδὰμ – “último Adão”

  • πνεῦμα ζωοποιοῦν – “espírito que dá vida”

Referências filológicas:
BDAG, HALOT, BHS, NA28, Rahlfs-LXX, Strong’s G76 (Adam), G5590 (psychē), G4151 (pneuma), G2227 (zōopoieō)

Comentários