Gênesis: o livro que funda o mundo, e resiste a todos os seus intérpretes

O primeiro versículo da Bíblia — Berē’šît bārā’ ’Elohîm ’et haššāmayim we’ēt hā’āreṣ (בְּרֵאשִׁית בָּרָא אֱלֹהִים אֵת הַשָּׁמַיִם וְאֵת הָאָרֶץ) — é talvez o texto mais estudado da história humana. Traduzido literalmente, “No princípio criou Deus o céu e a terra”. O termo berē’šît (“no princípio”) deriva da raiz rō’š (רֹאשׁ, “cabeça”, “início”), e carrega o sentido de um ato inaugural, não apenas um instante temporal. Bārā’ (בָּרָא) significa “criar a partir de nada” — verbo usado somente com Deus como sujeito. Nenhum ser humano “bārā’” algo; o termo humano é ‘āsāh (“fazer, moldar”).


Nos testemunhos textuais mais antigos, esse versículo é extraordinariamente estável. O Texto Massorético (base da Bíblia Hebraica atual) coincide quase integralmente com o Códice de Leningrado (1008 d.C.) e com o Códice de Aleppo (século X). O Pentateuco Samaritano preserva a mesma estrutura sintática, e a Septuaginta grega (LXX) traduz: Ἐν ἀρχῇ ἐποίησεν ὁ Θεὸς τὸν οὐρανὸν καὶ τὴν γῆνen archē epoiēsen ho Theos ton ouranon kai tēn gēn — “No princípio fez Deus o céu e a terra”. Essa tradução, datada do século III a.C., mostra que o texto hebraico já era fixo e respeitado.

O impacto teológico dessa frase é imenso. Nos mitos mesopotâmicos, como o Enuma Elish, o universo nasce de uma batalha entre deuses; em Gênesis, o cosmos nasce da palavra ordenadora de um único Deus. O universo não é produto de violência, mas de sentido. Gênesis inaugura a ideia de criação racional e ética — o mundo é inteligível porque provém da mente de um Criador racional.

As palavras da criação

O vocabulário de Gênesis 1 é conciso e filosófico. Rûaḥ ’Elohîm (רוּחַ אֱלֹהִים) — traduzido como “Espírito de Deus” — significa literalmente “vento/sopro de Deus”. A palavra rûaḥ (רוח) designa ao mesmo tempo o vento físico e o sopro vital; o mesmo termo descreve a respiração humana (rûaḥ ḥayyîm, “sopro de vida”). Esse duplo sentido faz da criação uma fusão entre matéria e espírito.

Cada dia da criação começa com wayyō’mer ’Elohîm (וַיֹּאמֶר אֱלֹהִים) — “E Deus disse…” — e termina com wayehî kēn (וַיְהִי כֵן) — “e assim foi”. A fórmula linguística cria uma cadência de decreto e realização. É o poder performativo da linguagem.

Nos manuscritos do Mar Morto (4QGenᵇ), datados do século II a.C., os versos de Gênesis 1 aparecem quase idênticos ao Texto Massorético — apenas variações ortográficas menores (ḥolem e qameṣ alternando em “luz” — ’ôr). Essa estabilidade milenar indica que o texto foi tratado como sagrado e imutável já na Antiguidade.

Culturalmente, Gênesis subverte o modelo cosmogônico do Oriente Próximo. O termo tehôm (תְּהוֹם, “abismo”) guarda eco fonético da deusa Tiamat, do mito babilônico — mas em Gênesis, o abismo não é uma divindade, e sim matéria bruta sob o controle de Deus. O vocabulário, portanto, redime os termos antigos, invertendo o sentido pagão e conferindo-lhe moralidade.

No diálogo com a ciência, Gênesis permanece filosófico. A narrativa dos “seis dias” é uma estrutura litúrgica: o sétimo dia, o šabbāt (שַׁבָּת), consagra o tempo e não a matéria. A ciência moderna pergunta sobre o mecanismo do universo; Gênesis trata do propósito. É por isso que, historicamente, pensadores como Galileu e Kepler consideravam a Bíblia o alicerce racional da investigação científica — um cosmos criado por uma mente racional pode ser decifrado por mentes racionais.

A queda e o enigma do bem e do mal

O episódio da árvore do conhecimento (Gênesis 3) é menos sobre biologia e mais sobre consciência moral. O verbo yāda‘ (יָדַע, “conhecer”) indica intimidade e experiência, não mero saber intelectual. “Comer do fruto” significa experimentar a autonomia moral sem maturidade. É a gênese da ética e da tragédia humanas.

No contexto semítico, o Éden (‘ēḏen, עֵדֶן, “prazer, delícia”) é um santuário-jardim, não uma floresta tropical. O homem (’ādām, אָדָם, “feito da terra”) vem de ’ădāmāh (אֲדָמָה, “solo”) — um trocadilho teológico: o ser humano é pó animado por rûaḥ. A mulher (ḥawwāh, חַוָּה, “vida”) é nomeada após a transgressão, porque se torna portadora da continuidade vital.

A crítica textual mostra notável coesão nesse trecho entre o Massorético, o Samaritano e a Septuaginta. O termo “serpente” (nāḥāš, נָחָשׁ) aparece de forma idêntica nas três tradições. Nenhuma variante significativa altera o sentido: o conflito central é epistemológico — o desejo humano de definir o bem e o mal à parte do Criador.

Do ponto de vista filosófico, o texto é precursor do conceito moderno de liberdade e responsabilidade. O mal não vem de fora, mas de dentro. Como diria Agostinho séculos depois, “a raiz do mal é a vontade que se volta de Deus para si mesma”. A queda, portanto, é o primeiro ensaio sobre a autonomia destrutiva da razão.

O dilúvio e a memória das águas

O relato do dilúvio (Gênesis 6–9) é o ponto de convergência entre memória, mito e moral. A palavra maḇūl (מַבּוּל, “dilúvio”) é única na Bíblia Hebraica, usada apenas aqui e no Salmo 29:10. A arca (tēvāh, תֵּבָה) tem paralelo em tēvāh de Êxodo 2:3 — o cesto de Moisés — criando uma simetria: ambos são recipientes de salvação flutuando sobre as águas do caos.

Comparativamente, o Épico de Gilgamesh contém um relato de dilúvio anterior, mas a diferença ética é radical: os deuses mesopotâmicos punem por capricho; o Deus de Gênesis age por justiça. O arco-íris (qešet, קֶשֶׁת) — literalmente “arco de guerra” — é reinterpretado como sinal de aliança e paz, uma inversão semântica que marca a singularidade teológica do texto hebraico.

Nos manuscritos antigos, as variantes são mínimas. A Septuaginta traduz maḇūl por kataklysmos (κατακλυσμός), origem do termo moderno “cataclismo”. Os papiros do Mar Morto (4QGenh) preservam o mesmo vocabulário, reforçando que o núcleo narrativo do dilúvio é textualmente estável e teologicamente coerente.

Em diálogo com a ciência, o episódio pode refletir lembranças de inundações catastróficas do final do Pleistoceno. Mas o foco do texto é moral: o mundo é refeito sobre a promessa (berît, בְּרִית) — a primeira ocorrência dessa palavra na Bíblia. O cosmos é restaurado não apenas fisicamente, mas eticamente.

Os patriarcas e a promessa

Com Abraão, o livro muda de escala: da cosmogonia à história. O nome Abrām (אַבְרָם, “pai exaltado”) torna-se ’Abrahām (אַבְרָהָם, “pai de multidões”). Essa alteração, acompanhada pela mudança de Sarai (שָׂרַי) para Sarah (שָׂרָה), simboliza a transformação identitária pela aliança. O chamado divino — lekh-lekhā (לֶךְ־לְךָ, “vai-te”, literalmente “vai para ti mesmo”) — sugere um caminho tanto geográfico quanto existencial.

Fontes arqueológicas (como os arquivos de Mari e Nuzi, séculos XVIII–XVII a.C.) confirmam a presença de tribos semitas nômades na região de Harã e Ur — contexto compatível com a narrativa patriarcal. Os nomes dos patriarcas seguem padrões semíticos reais da época, o que reforça o vínculo histórico do texto.

Culturalmente, os patriarcas introduzem a teologia da aliança ética. O Deus de Abraão não exige culto ritual, mas confiança moral. ’Emunāh (אֱמוּנָה, “fidelidade, firmeza”) é o termo que resume sua fé. A promessa — “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12:3) — rompe o tribalismo e anuncia uma universalidade inédita para o mundo antigo.

José e o triunfo da providência

Os capítulos 37–50, que narram a trajetória de José, formam uma das unidades literárias mais bem preservadas da Bíblia. O nome Yôsēf (יוֹסֵף, “que acrescente”) ecoa seu destino: “Deus me fez crescer na terra da minha aflição” (Gn 41:52). Textualmente, há perfeita correspondência entre o Massorético e a LXX, com apenas diferenças ortográficas em nomes egípcios.

O título egípcio dado a José — Ṣāpenat-pa‘nēaḥ (צָפְנַת פַּעְנֵחַ) — é transliteração hebraica de um nome egípcio real, provavelmente Djed-pa-net-iuf-ankh, “o deus fala e ele vive”. Detalhes como esse revelam fidelidade cultural precisa, incompatível com uma invenção tardia.

A teologia de José é a síntese de Gênesis: o mal humano é real, mas pode ser integrado num bem maior. “Vós intentastes o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem” (Gn 50:20). A providência (hashgachah) bíblica não é determinismo; é direção moral. O livro começa com o caos e termina com reconciliação — do abismo à promessa.

Síntese reveladora

De berē’šît (no princípio) a berît (aliança), o livro de Gênesis constrói um arco de sentido que abrange o cosmos e a consciência. Mesmo após séculos de crítica textual, arqueologia e comparações mitológicas, o texto permanece internamente coerente e historicamente plausível. Suas variantes são poucas e suas ideias, poderosas.

Filologicamente, o hebraico de Gênesis mostra uniformidade notável: 1.534 versos distribuídos em 50 capítulos, preservados com consistência impressionante entre os códices Leningradensis e Aleppo, a LXX, o Samaritano e os fragmentos de Qumran. Nenhum outro texto da Antiguidade demonstra tamanha integridade linguística e teológica.

Mais do que origem do mundo, Gênesis é origem do pensamento. É a primeira tentativa humana de compreender não apenas o que existe, mas por que existe.

Fechamento provocativo

Ler Gênesis é regressar ao princípio — não do tempo, mas do sentido.
Cada linha dele pede investigação, não crença cega.
Cada verbo hebraico guarda uma filosofia.

A Escritura resiste à crítica porque nasceu do mesmo impulso que move a crítica: o desejo de entender o real.

Gênesis não exige mediadores.
Exige leitores.

E todo leitor que o encara com honestidade reencontra o início do mundo — dentro de si.

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