Pentateuco Samaritano: a Torah esquecida que sobreviveu em Siquém

Um manuscrito em letras hebraicas arcaicas, preservado por uma pequena comunidade nas montanhas da antiga Samaria, guarda uma versão singular dos cinco livros atribuídos a Moshe (Moisés). Conhecido como Pentateuco Samaritano, este texto se tornou uma das mais intrigantes testemunhas da transmissão bíblica, rivalizando com a tradição massorética (judaica) e a Septuaginta (grega).

Quem são os guardiões dessa Torah alternativa? E o que suas variantes revelam sobre disputas antigas entre Jerusalém e Siquém?

Leia também



O que é o Pentateuco Samaritano?

O Pentateuco Samaritano é a coleção dos cinco livros de Moshe (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), transmitidos pela comunidade samaritana, um grupo que se autodenomina Shomerim (“os guardiões”).

Diferente do Texto Massorético (TM), que se tornou o cânon do judaísmo rabínico, o texto samaritano foi preservado em escritura hebraica paleo (não no quadrático aramaico), refletindo uma tradição arcaica.

Principais diferenças em relação ao Texto Massorético

  • Monte Gerizim como lugar escolhido: No Deuteronômio 27, onde o TM fala sobre a bênção no monte Gerizim e a maldição em Ebal, o Pentateuco Samaritano reforça Gerizim como o local central de culto. Isso legitima o santuário samaritano em Siquém, em oposição a Jerusalém.

  • Ortografia e estilo: O texto contém cerca de 6.000 variantes em relação ao TM. Muitas são ortográficas, mas algumas têm impacto teológico.

  • Harmonizações: O Pentateuco Samaritano tende a suavizar aparentes contradições internas, tornando o texto mais uniforme.

  • Calendário e halakhá: Algumas diferenças refletem práticas específicas dos samaritanos, como o cálculo do calendário festivo.

Evidências manuscritas

  • Manuscrito Abisha (c. século XIII, mas reivindicado como cópia antiga): preservado em Nablus, considerado pelos samaritanos como a cópia original feita por Abisha, bisneto de Aarão.

  • Manuscritos de Qumran (DSS): Fragmentos encontrados em Qumran mostram afinidades com a tradição samaritana, provando que essa linhagem textual não nasceu tardiamente, mas já circulava no período do Segundo Templo.

  • Comparação crítica: A crítica textual moderna classifica o Pentateuco Samaritano como testemunha independente, ao lado do TM e da LXX.

Evidência arqueológica e histórica

  • Inscrições samaritanas em escritura paleo-hebraica (séculos IV–II a.C.) confirmam o uso de um alfabeto distinto do judaico.

  • Monte Gerizim: escavações em Tell Balata (Siquém) revelaram vestígios de um grande templo samaritano ativo nos períodos persa e helenístico.

  • Papiros e moedas: indícios de que a comunidade samaritana tinha autonomia religiosa e política durante a dominação persa.

Classificação acadêmica:

  • A – Convergência: Existência e autenticidade do Pentateuco Samaritano.

  • B – Parcial: Origem no período persa ou mesmo pré-exílico.

  • C – Interpretativo: Centralidade teológica de Gerizim vs. Jerusalém.

Origem da ruptura

A rivalidade entre judeus e samaritanos intensificou-se após o exílio babilônico (século VI a.C.). Enquanto os judeus reconstruíram o Templo em Jerusalém, os samaritanos defenderam o Monte Gerizim como o verdadeiro local da adoração a YHWH. Essa cisão se refletiu no próprio texto da Torah.

Os samaritanos rejeitaram os Nevi’im (Profetas) e Ketuvim (Escritos), mantendo apenas o Pentateuco como Escritura sagrada.

Impacto atual

Hoje, apenas cerca de 850 samaritanos vivem entre Nablus (antiga Siquém) e Holon (Israel), preservando a leitura litúrgica do Pentateuco em hebraico samaritano e aramaico.

Para os estudiosos, o Pentateuco Samaritano é uma chave essencial para reconstruir a história da Bíblia hebraica e suas disputas de autoridade. Ele demonstra que a Torah circulava em múltiplas versões concorrentes antes da padronização judaica e cristã.

Conclusão

O Pentateuco Samaritano é mais do que uma variante textual: é um testemunho vivo das batalhas por memória e identidade no antigo Israel. Sua preservação mostra que a história bíblica não foi uma linha única, mas um mosaico de tradições em disputa, onde até a própria Torah se tornou campo de batalha.


Glossário

  • Shomerim | Guardiões | — | Nome próprio da comunidade samaritana

  • Pentateuco Samaritano | Versão da Torah preservada pelos samaritanos | — | Baseada nos cinco livros de Moshe

  • Monte Gerizim | Local de culto central dos samaritanos | — | Dt 27

  • Texto Massorético (TM) | Tradição textual judaica da Bíblia Hebraica | — | Base para a maioria das traduções modernas

  • Septuaginta (LXX) | Tradução grega da Bíblia Hebraica | — | Século III-II a.C.

  • Tell Balata | Sítio arqueológico de Siquém | — | Vestígios do templo samaritano

Comentários