O Rei Desconhecido que Abençoou Abraão: O Enigma de Melquisedeque

A planície ao sul de Canaã está coberta de poeira. Quatro reis do Oriente — liderados por Quedorlaomer de Elão — haviam devastado o vale do Sidim, onde reinavam Sodoma e Gomorra. Abraão (então ainda chamado Abrão) marcha com 318 homens treinados, resgata seu sobrinho Ló e retorna vitorioso. É nesse momento que surge um personagem enigmático, de quem nada se sabe antes e quase nada depois: Melquisedeque, “rei de Shalém”, traz pão e vinho e abençoa o patriarca em nome de ’El Elyon — “Deus Altíssimo”.

O breve relato de Gênesis 14:18–20 é uma das passagens mais intrigantes de todo o Pentateuco. Ele quebra o ritmo narrativo da guerra e insere uma figura de autoridade espiritual que não vem da linhagem de Abraão, nem do sacerdócio levítico (que ainda não existia). Essa aparição isolada será depois lembrada no Salmo 110 e reinterpretada na Carta aos Hebreus, como símbolo de um sacerdócio eterno. Mas quem era esse “rei de justiça” e por que a Bíblia o introduz tão cedo?

Investigação textual: o nome e o texto primitivo

O nome Melqui-ṣédeq (מַלְכִּי־צֶדֶק) significa literalmente “meu rei é justiça” ou “rei de justiça”, derivado das raízes hebraicas melek (rei) e ṣedeq (justiça, retidão). O termo é consistente nas tradições textuais mais antigas: o Texto Massorético, a Septuaginta grega (Μελχισεδέκ) e os fragmentos do Gênesis encontrados em Qumran preservam a forma idêntica, sem variantes significativas. Isso indica que a referência a esse personagem é estável desde o período pré-exílico (antes do século VI a.C.), o que confere ao episódio um caráter arcaico.

Mais surpreendente é o título de sua cidade: Shalém, raiz de shalom (“paz, inteireza”). Muitos estudiosos associam Shalém à antiga Urusalim (Jerusalém primitiva), cujo nome em textos egípcios do século XIX a.C. aparece como Rûshalimum. Se essa identificação estiver correta, o episódio narraria o primeiro contato de Abraão com o território que séculos depois se tornaria o centro espiritual de Israel. A Bíblia, portanto, faz Jerusalém nascer sob a bênção de um rei-sacerdote justo.

Há ainda o título divino que Melquisedeque pronuncia: ’El Elyon, traduzido como “Deus Altíssimo”. É uma designação cananita arcaica, usada em inscrições de Ugarite (século XIV a.C.) para designar o Deus supremo. O uso dessa forma sugere que Melquisedeque cultuava o mesmo Deus que Abraão, mas em uma tradição paralela — monoteísta antes do monoteísmo hebreu se consolidar.

Contexto histórico e cultural: o rei-sacerdote de Jerusalém

A figura do rei-sacerdote não era incomum no antigo Oriente Próximo. Reis da Mesopotâmia e de Canaã acumulavam funções políticas e religiosas, sendo vistos como mediadores entre o povo e a divindade local. Melquisedeque se encaixa nesse padrão, mas com uma peculiaridade: ele não representa uma divindade local, e sim o Deus universal, criador do céu e da terra.

Arqueologicamente, o título ṣedeq (“justiça”) reaparece em nomes de reis jebuseus de Jerusalém no período posterior, como Adoni-ṣedeq (Josué 10:1). Isso indica que Ṣedeq pode ter sido o nome de uma antiga divindade ou atributo divino associado à realeza justa. Melqui-ṣedeq, nesse caso, seria um título teofórico — um rei que governa em nome da justiça divina. A Bíblia, porém, reinterpretou esse título como expressão do Deus verdadeiro, limpando-o de conotações politeístas.

A tradição rabínica posterior tentou identificar Melquisedeque com Sem, filho de Noé, prolongando assim a linhagem justa até Abraão. Essa leitura, embora simbólica, expressa uma intuição correta: antes da revelação mosaica, já havia homens que conheciam o Deus de justiça e o serviam fielmente.

Diálogo com o mundo moderno: o eco de um sacerdócio universal

O episódio desafia a ideia de que a fé bíblica nasce apenas com Abraão. Ele mostra que, paralelamente, existiam povos e líderes espirituais que reconheciam o mesmo Deus. Em tempos modernos, isso ressoa com o conceito de revelação geral — a noção de que o Criador se manifestou à humanidade antes das instituições religiosas.

Do ponto de vista histórico-religioso, Melquisedeque representa a ponte entre fé natural e fé revelada. Sua bênção legitima Abraão não como fundador exclusivo de um culto, mas como herdeiro de uma tradição mais antiga e universal de justiça. O autor de Hebreus (7:3) captará essa intuição ao dizer que Melquisedeque é “sem pai, sem mãe, sem genealogia” — não por ser um ser místico, mas porque pertence a uma linhagem espiritual que transcende as fronteiras étnicas.

Hoje, a figura de Melquisedeque continua fascinando arqueólogos e teólogos. Nas cavernas de Qumran, um texto do século I a.C. (11QMelch) o descreve como um agente divino que traz libertação escatológica. O eco dessa figura atravessa milênios: um rei que representa a justiça eterna e abençoa o patriarca fundador da fé.

Síntese reveladora: coerência e profundidade do texto sagrado

O relato de Gênesis 14 resiste à crítica textual e arqueológica: sua linguagem é antiga, suas formas onomásticas autênticas e seu contexto cultural verossímil. Nenhum elemento contradiz o cenário do segundo milênio a.C., época em que Abraão teria vivido. Ao contrário, tudo converge para um quadro histórico consistente: um patriarca nômade encontra um rei urbano que adora o mesmo Deus.

A coerência do episódio é notável. A Bíblia apresenta um universo religioso em que a fé em YHWH não surge de um vazio, mas se insere numa linha contínua de justiça e adoração. Melquisedeque não é um intruso mitológico — é a prova de que o “Deus de Abraão” já era conhecido por outros servos fiéis.

Fechamento provocativo

Melquisedeque aparece por três versículos e desaparece para sempre. No entanto, sua sombra paira sobre toda a teologia bíblica: um rei que abençoa, um sacerdote sem genealogia, um nome que une justiça e paz. A Escritura parece dizer que o conhecimento de Deus não começou com um povo, mas com a humanidade inteira.

Quem lê o relato percebe o convite implícito: para entender Abraão, é preciso voltar a Melquisedeque — e para entender Melquisedeque, é preciso voltar ao texto original. A Bíblia guarda nele um dos seus segredos mais antigos: antes de haver Israel, já havia justiça.

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