Durante séculos, a humanidade ouviu que dentro de cada pessoa habita uma "alma imortal", uma centelha espiritual separada do corpo, destinada ao céu ou ao inferno após a morte. Essa ideia é tida como base da fé por muitos. Mas será que esse conceito tem fundamento na Escritura hebraica original? Ou será que essa doutrina nasceu em outro solo, cultivada fora do pensamento profético da aliança?
Neste artigo, escavamos o texto hebraico e comparamos manuscritos anteriores à destruição do Segundo Templo para verificar: há realmente uma “alma imortal” na Bíblia? O que significa nefesh? O que se perde quando traduzimos esse termo por “alma”? E o mais grave: essa ideia é uma revelação da aliança ou uma inserção helenista tardia? Vamos examinar os termos, os contextos e os manuscritos – sem filtros doutrinários.
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O problema da imortalidade inata
A doutrina da “alma imortal” sustenta pilares centrais de diversas tradições religiosas ocidentais. Segundo essa crença, o ser humano possui um componente imaterial e eterno, separado do corpo, que continua consciente após a morte física. No entanto, essa visão não surge do hebraísmo bíblico, mas da filosofia grega — especialmente do pensamento platônico, que via o corpo como prisão da alma.
A pergunta central é: o que os profetas e os escritos hebraicos realmente revelam sobre a nefesh? É uma substância espiritual eterna? Ou é algo mais terreno, concreto e vinculado à respiração?
O que significa nefesh?
A palavra traduzida como “alma” nas Escrituras hebraicas é נֶפֶשׁ – nefesh (sopro / vida / ser) – Strong’s H5315 | Subst. fem. sing.
Ela aparece mais de 750 vezes no Tanakh, e sua aplicação é majoritariamente física, concreta e vital – não espiritualizada nem etérea.
Exemplos centrais:
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Bereshit (Gênesis) 2:7
“YHWH Elohim formou o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego de vida; e o homem tornou-se uma nefesh chayah (ser vivente).”
⚠️ Nefesh não é algo que o ser humano possui, mas é o que ele se torna ao receber o sopro (neshamah – נְשָׁמָה) de vida.
📘 Traduções comuns: “alma vivente” (Almeida) introduzem dualismo corpo-alma, inexistente no hebraico.
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Bemidbar (Números) 19:11
“Quem tocar um morto, o corpo de qualquer nefesh adam (vida humana), ficará impuro sete dias.”
⚠️ Aqui, nefesh refere-se ao cadáver, ao ser humano morto. Não há ideia de “alma” viva separada do corpo.
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Tehillim (Salmos) 6:5
“Pois na morte não há lembrança de ti; no Sheol, quem te louvará?”
🧭 Hebraísmo revela ausência de consciência na morte, sem menção à continuidade da nefesh.
De onde veio a doutrina da alma imortal?
A ideia de alma imortal não emerge dos textos hebraicos originais, mas sim da filosofia grega, sobretudo:
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Platão (Fédon, 4º s. a.E.C.): a alma é imaterial, eterna, separável do corpo.
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Pítias de Sere (neopitagóricos): propuseram a transmigração da alma.
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⚠️ Estes conceitos entraram no mundo judaico especialmente no período helenístico (após Alexandre, 4º s. a.E.C.), quando muitos judeus passaram a viver sob influência grega (ver 2Macabeus, Sabedoria de Salomão).
Com o tempo, algumas correntes judaicas como os fariseus helenizados adotaram visões sobre ressurreição e alma influenciadas por essa filosofia. No período pós-templo, o dualismo corpo-alma foi amplificado por pensadores como Filon de Alexandria, e mais tarde assimilado por teólogos cristãos, como Agostinho, que fundiram o platonismo com leituras latinas da Bíblia.
O impacto dessa distorção
Ao substituir o conceito hebraico de nefesh por “alma imortal”, rompe-se com a cosmovisão da aliança:
• A vida é vista como vinda do sopro de YHWH – e não como algo inerente
• A esperança está na ressurreição corpórea futura (Dn 12:2), não na fuga da alma para o além
• O Sheol (morada dos mortos) é lugar de inconsciência, não de atividade espiritual
Esse deslocamento gerou doutrinas como:
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Céu imediato após a morte (sem julgamento final)
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Inferno eterno como destino consciente de almas
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Reencarnação (em sistemas sincréticos)
Tudo isso sem base no hebraico bíblico, mas com raízes em sistemas estranhos à aliança.
A alma morre
O Tanakh é claro: nefesh pode morrer. Não é eterna por natureza.
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Yechezkel (Ezequiel) 18:4
“A nefesh que pecar, essa morrerá.”
📘 Impossível manter a doutrina da imortalidade inata com esse texto.
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Iyov (Jó) 34:14-15
“Se Ele retirasse Seu ruach e Seu neshamah, toda carne pereceria... e o homem voltaria ao pó.”
🧠 A vida é sustentada pelo fôlego divino. Sem ele, não há nefesh viva.
Retornar à visão profética da vida
É urgente retornar à visão dos profetas: a vida é dom de YHWH, e a esperança está na ressurreição, não na imortalidade inata.
Negar a morte da nefesh é negar a necessidade de ressurreição.
Negar a ressurreição é negar a esperança de Israel.
Como está escrito:
“Multidões dos que dormem no pó da terra acordarão...” (Dn 12:2)
Não há alma flutuando no céu – há mortos aguardando a voz do Ungido.
Bloco Técnico
| Termo | Tradução | Strong’s | Morfologia | Referência |
|---|---|---|---|---|
| Nefesh (נֶפֶשׁ) | Ser / vida / fôlego | H5315 | Subst. fem. sing. | Gn 2:7 |
| Neshamah (נְשָׁמָה) | Fôlego | H5397 | Subst. fem. sing. | Jó 34:14 |
| Ruach (רוּחַ) | Sopro / espírito | H7307 | Subst. fem. sing. | Gn 6:3 |
| Sheol (שְׁאוֹל) | Submundo / sepultura | H7585 | Subst. fem. sing. | Sl 6:5 |
🧭 Classificação Hermenêutica do Tema:
• Conceito de nefesh: A – Convergência de fontes
• Negação da imortalidade inata: B – Fundamento parcial
• Origem grega da doutrina da alma: C – Leitura interpretativa
• Aplicações teológicas modernas: D – Hipótese especulativa

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