O azeite sobre o pastor: quando o Ungido não é ainda rei

A unção de David (1Sm 16:13) não foi acompanhada de coroação, trono ou visibilidade pública. Ainda que o azeite tenha sido derramado, o reconhecimento humano e a manifestação do reinado foram adiados por anos. O erro das leituras convencionais é esperar que a unção traga instantaneamente status, autoridade e palco. Mas o padrão profético mostra o oposto: o Ungido é consagrado antes de ser revelado — e permanece pastor mesmo depois da unção.

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Base textual

“E tomou Sh’mu’el o chifre do óleo, e o ungiu no meio de seus irmãos; e, desde aquele dia em diante, o Ruach de יהוה se apoderou de David.”
1Sm 16:13

Aqui temos três termos-chave:

  1. שֶׁמֶן (shemen)azeite, óleo – Strong’s H8081 | Subst. masc. sing.

  2. מָשַׁח (mashach)ungir, consagrar – Strong’s H4886 | Verbo qal

  3. רוּחַ (ruach)fôlego, espírito – Strong’s H7307 | Subst. fem. sing.

O texto hebraico marca claramente que o Ruach de YHWH veio sobre David “מֵהַיּוֹם הַהוּא וָמָעְלָה” – “desde aquele dia e para sempre”.

Isso sela a unção de David como irrevogável. Mas — e aqui está o ponto decisivo — nada muda externamente.

➡️ Ele volta para o campo. O trono ainda é de Shaul. Os irmãos seguem sendo soldados.
➡️ A presença o preenche, mas o sistema o ignora.

Origem da distorção

O imaginário religioso popular, influenciado por modelos triunfalistas, passou a associar “unção” com exaltação imediata. Termos como "ungido" foram ressignificados como status eclesiástico.

⚠️ Porém, no modelo davídico:

  • A unção antecede o trono

  • A presença precede a plataforma

  • O chamado não depende de reconhecimento institucional

🧭 A cronologia de David quebra expectativas humanas: entre a unção e o reinado passam-se cerca de 15 anos.

Impacto atual

Muitos, ao perceberem que foram “ungidos” por YHWH (chamados, separados, visitados), esperam reconhecimento instantâneo. Mas a experiência de David ensina:

O céu pode ter dito “sim” enquanto a terra ainda diz “não”.

Essa tensão gera crises espirituais. Porém, o tempo entre a unção e o trono é o laboratório da fidelidade. É nesse período que o caráter é forjado, os inimigos são revelados e o coração é provado.

Evidência negligenciada

📘 A Septuaginta (LXX) usa para 1Sm 16:13:

καὶ ἔλαβεν Σαμουὴλ τὸ κέρας τοῦ ἐλαίου καὶ ἔχρισεν αὐτὸν ἐν μέσῳ τῶν ἀδελφῶν αὐτοῦ· καὶ ἐπέστη πνεῦμα κυρίου ἐπὶ Δαυιδ
“E tomou Samuel o chifre do óleo e o ungiu no meio dos irmãos; e veio o Espírito do Senhor sobre David…”

🧠 A forma verbal ἐπέστη (epestē)veio sobre, pousou repentinamente – indica uma ação instantânea, mas não contínua no plano visível.

📜 O Targum Jonathan amplia o texto, sugerindo que a Shekhinah começou a falar por meio de David desde aquele dia.

📄 Os Salmos refletem esse intervalo:

“Fui ungido com óleo fresco...” (Sl 92:10)
“Tu me unges a cabeça com óleo...” (Sl 23:5)

Mas não há registro de reconhecimento institucional antes de 2Sm 2.

Retorno à aliança

A verdadeira unção não é um título, mas um peso de responsabilidade. O Ungido (Mashiach) serve primeiro escondido, em anonimato, em silêncio.

“David guardava as ovelhas.”
“Yeshua crescia em sabedoria e graça.”
“Moshe foi pastor em Midian por 40 anos.”
“Yosef foi esquecido na prisão depois do sonho.”

🧭 A unção não é recompensa. É semente.


Fontes, glossário e morfologia

TermoTraduçãoStrong’sMorfologiaReferência
ShemenAzeiteH8081Subst. masc. sing.1Sm 16:13
MashachUngirH4886Verbo qal1Sm 16:13
RuachFôlego, EspíritoH7307Subst. fem. sing.1Sm 16:13
QerenChifreH7161Subst. masc. sing.1Sm 16:13
Sh’men mishchahÓleo de unçãoH4888Subst. fem. sing.
Ex 30:25

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