O Peso do Ciúme Masculino nas Escrituras: Medida, Origem e Conselhos Antigos

A ideia moderna de que “ciúme é prova de amor” não encontra sustentação nos textos antigos. Em hebraico, a raiz do termo geralmente traduzido como “ciúme” é קנא (qana’) — termo que aparece tanto para humanos quanto para o próprio Elohim:

“YHWH, cujo nome é Ciumento (קַנָּא), é um Elohim zeloso” (Êxodo 34:14)

Mas quando o termo é usado para homens, como no caso de maridos, ele se carrega de conotação explosiva, irracional e até mortal.

Leia também:

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A “Torá do ciúme” — o caso extremo previsto pela Lei

O caso mais emblemático está em Números 5:11–31, onde há um rito específico para lidar com o ciúme de um homem que suspeita da infidelidade da esposa sem prova concreta. Esse rito, conhecido como “ordeal das águas amargas”, tem o nome em hebraico:

תּוֹרַת הַקְּנָאֹת (torat ha-qena’ot) — “a instrução sobre os ciúmes”

O que chama atenção é que não existe rito equivalente para a mulher em ciúmes do marido. A Lei reconhece que o ciúme do homem é algo perigoso demais para ser ignorado ou reprimido — precisava ser canalizado ritualmente.

Ciúme gera furor: o aviso de Mishlê (Provérbios)

O livro de Provérbios alerta com clareza:

“Pois o ciúme excita o furor do homem; ele não poupará no dia da vingança.”
(Provérbios 6:34)

O texto hebraico original usa:

כִּי־קִנְאָה חֲמַת־גָּבֶר (ki-qin’ah chamat-gaver)
“Pois o ciúme é a fúria de um homem”

A palavra חֵמָה (chemah) significa “ira ardente”, “veneno”, “fermento de raiva”. O conselho implícito aqui não é que o ciúme seja “normal” ou “justo”, mas que ele é perigoso e incontrolável — e por isso deve ser prevenido e desarmado antes que exploda.

O ciúme em Cânticos: paixão possessiva ou desejo legítimo?

Mesmo no cântico erótico de Shir Hashirim (Cantares), o ciúme aparece como algo mais forte que a morte:

“O ciúme é cruel como o Sheol” (Cânticos 8:6)
עָזָה כִּשְּׁאוֹל קִנְאָה (azah kishe’ol qin’ah)

Aqui o ciúme é ligado ao amor como fogo violento — ou seja, a linha entre paixão e destruição é tênue. Mesmo num contexto de amor legítimo, o ciúme é perigoso.

YHWH também é ciumento — mas o que isso significa?

Diversos textos chamam YHWH de Elohim qana’ — ciumento, zeloso. Mas essa “ciumentude” de YHWH é diferente: não é baseada em insegurança ou posse, mas em aliança quebrada. Ou seja, YHWH não tolera traição espiritual (idolatria), e o ciúme dEle é jurídico, baseado em pacto.

Isso nos ajuda a diferenciar: o ciúme humano nasce do medo de perda.
O ciúme divino nasce da quebra de uma aliança mútua e explícita.


Ciúme não é fruto do Espírito: o ensino apostólico

Nas epístolas, o ciúme aparece como uma obra da carne, a ser abandonada:

“Pois onde há inveja e rivalidade, aí há confusão e toda obra perversa.”
(Tiago 3:16)

“Lançai fora [...] ciúmes, contendas” (Romanos 13:13)

A palavra usada em grego é ζῆλος (zēlos) — que pode significar tanto “zelo positivo” quanto “ciúme destrutivo”, dependendo do contexto. Paulo adverte contra o zēlos descontrolado — que destrói comunidades, relacionamentos e a própria consciência.

Conselhos práticos nas Escrituras: o antídoto contra o ciúme

  1. Autocontrole e domínio próprio (ἐγκράτεια – enkrateia)

    • Um dos frutos do Espírito (Gálatas 5:23), o domínio próprio é o único freio interno ao ciúme.

  2. Amor que não inveja (ἀγάπη)

    • “O amor não arde em ciúmes” (1Co 13:4). Amor verdadeiro respeita liberdade, não exige controle.

  3. Aliança mútua com transparência

    • Como o modelo de YHWH com Israel: baseada em fidelidade e pacto, não em desconfiança cega.

Ciúme é humano, mas não inevitável — e pode ser curado

As Escrituras não negam que o ciúme exista. Mas ensinam que ele precisa ser reconhecido, diagnosticado e transformado. O homem muito ciumento precisa mais de cura do que de justificativa — pois, segundo os próprios textos antigos, o ciúme descontrolado é próximo da loucura e da violência.


Bloco Técnico

Texto Base:

כִּי־קִנְאָה חֲמַת־גָּבֶר וְלֹא יַחְמוֹל בְּיוֹם נָקָם (Provérbios 6:34)

Transliteração SBL:

ki-qin’ah chamat-gaver velo yachmol beyom naqam

Tradução Literal:

Pois ciúme é a fúria de um homem, e ele não terá compaixão no dia da vingança.

Morfologia:

  • קִנְאָה (qin’ah): ciúme, zelo (substantivo feminino, raiz קנא)

  • חֲמַת (chamat): fúria, calor, ira (constructo de חֵמָה)

  • גָּבֶר (gaver): homem, macho adulto

  • יַחְמוֹל (yachmol): ele terá compaixão/poupará (verbo חמל, qal imperfeito)

  • נָקָם (naqam): vingança, retribuição (substantivo)

Grau de confiabilidade textual: A (base BHS + LXX confirmada)

Fontes:

  • HALOT (The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament)

  • BDB (Brown-Driver-Briggs)

  • LXX (Rahlfs), para cotejo de ζῆλος

  • NA28 (Nestle-Aland)

  • Strong’s H7068, H2534, H1377, G2205

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