Antes de tudo, é necessário desconstruir a ideia moderna de “divórcio” e investigar o que essa prática significava nos contextos hebraico, greco-romano e da seita farisaica no século I.
No Tanakh, o divórcio aparece legitimado na Torá:
“Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não achar graça aos seus olhos, por ter achado nela coisa indecente, ele lhe escreverá um sefer keritut (carta de rompimento), e a despedirá”
(Devarim/Deuteronômio 24:1)
O termo-chave aqui é "sefer keritut", literalmente “livro de corte”, ou “escrito de separação”. Isso indica uma ruptura legal formalizada por documento, o que já revela um processo institucionalizado.
No Qumran, a seita dos essênios via o divórcio como impuro. Mas os fariseus, como grupo dominante, aceitavam-no — debatendo apenas os motivos válidos: “por qualquer motivo” ou apenas em caso de "ervat davar" (coisa indecente).
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O que Yeshua realmente respondeu sobre o divórcio?
A passagem mais conhecida sobre o tema está em Mateus 19:3-9, mas há variantes relevantes nos outros sinóticos e nos manuscritos antigos.
Na versão tradicional:
“Qualquer que repudiar sua mulher, exceto por causa de fornicação, e casar com outra, comete adultério.”
(Mateus 19:9, Almeida)
O problema é que a palavra “fornicação” aqui traduz o termo grego πορνεία (porneía), mas essa palavra carrega uma variedade de sentidos, e seu contexto não é simples.
No grego da Septuaginta (LXX), porneía é usada para se referir a relações sexuais ilícitas pré-nupciais ou incestuosas, e não ao adultério conjugal (moicheia).
Nos Manuscritos do Mar Morto, o termo equivalente em hebraico para essa “imoralidade” pode ser ‘ervah — o mesmo usado em Deuteronômio 24.
A fala de Yeshua, portanto, parece se posicionar contra o divórcio leviano permitido por escolas como Hillel, mas não anula o direito de rompimento por transgressões sérias da aliança.
Os manuscritos mais antigos confirmam essa cláusula de exceção?
Sim. A Peshitta aramaica, preservada desde o século II, traz uma formulação que reforça a exceção:
“Se um homem separar sua mulher, fora do caso de fornicação, e casar com outra, comete adultério.”
(Mattai 19:9, Peshitta)
A cláusula de exceção está presente nos seguintes manuscritos:
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Codex Vaticanus (B) — século IV
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Codex Sinaiticus (א) — século IV
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Peshitta aramaica — século II–III
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Versões latinas antigas (Vetus Latina)
Já em Marcos 10:11-12 e Lucas 16:18, essa cláusula não aparece — o que exige atenção filológica. Marcos e Lucas escrevem de modo mais sintético, enquanto Mateus preserva debates internos da halachá judaica. É possível que Yeshua tenha feito ambas as declarações, em contextos distintos.
Divórcio e nova união: é sempre adultério?
Aqui está o ponto mais mal interpretado da tradição eclesiástica: a proibição absoluta da nova união após o divórcio.
Segundo Deuteronômio 24, a mulher que se divorcia e se casa novamente não está em adultério, a menos que volte para o primeiro marido após outro casamento (isso é o que se proíbe). A Torá não proíbe novo casamento após divórcio legítimo.
Yeshua, ao citar isso, denuncia uma prática injusta e hipócrita, em que homens repudiavam mulheres por motivos banais e depois se casavam de novo como se nada houvesse acontecido. O adultério, portanto, está no abuso da Torá, e não na nova aliança por si só.
Paulo contradiz Yeshua ou preserva a Torá?
Em 1 Coríntios 7, Shaul (Paulo) orienta casos práticos:
“Se o descrente quiser se apartar, que se aparte; o irmão ou a irmã não está sujeito à servidão nesse caso.”
(1Co 7:15)
A expressão “não está sujeito à servidão” (οὐ δεδούλωται) é linguagem legal: liberação do vínculo conjugal. Isso abre caminho para nova união — especialmente quando há abandono ou quebra irreparável da aliança.
Shaul, portanto, não contradiz Yeshua. Ele aplica a mesma ética da aliança: o casamento é sagrado, mas quando a aliança é quebrada de forma irrecuperável — por infidelidade, violência ou abandono — a parte inocente está livre.
Bloco Técnico
Texto base: Mateus 19:9 (Peshitta Aramaica)
ܕܐܡܪ ܐܢܐ ܠܟܘܢ ܕܡܢ ܕܢܫܒܘܩ ܠܐܢܬܬܗ ܒܠܐ ܡܠܬܐ ܕܙܢܝܘܬܐ ܘܢܣܒ ܐܚܪܬܐ ܓܐܪ ܘܡܢ ܕܢܣܒ ܫܒܝܩܬܐ ܓܐܪ
Transliteração SBL:
da'emar 'ana lakun, dman d'nashbuq l'antateh bela melta d'zenyuta w'neseb aḥrta, ge’ar; wman d'naseb shaviyqta, ge’ar
Tradução literal interlinear:
"Eu vos digo que aquele que despedir sua mulher — sem motivo de zenyuta (relações ilícitas) — e tomar outra, adultera; e quem tomar a repudiada, adultera."
Análise morfológica
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ܙܢܝܘܬܐ (zenyuta) – substantivo abstrato: fornicação, prostituição, transgressão sexual.
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ܓܐܪ (ge’ar) – verbo no tempo perfeito: cometeu adultério.
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ܡܠܬܐ (melta) – “motivo”, “causa”, lit. “palavra/coisa”, equivalente ao grego λόγος.
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ܫܒܝܩܬܐ (shaviyqta) – mulher que foi deixada, divorciada.
Grau de confiabilidade textual: A
A cláusula de exceção está presente de modo consistente em manuscritos de alta autoridade, tanto em grego (B, א) quanto em aramaico (Peshitta). Os manuscritos minoritários que omitem a cláusula são tardios e possivelmente harmonizados.
Referências filológicas
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BDAG: πορνεία – ilicitude sexual geral, distinta de adultério (μοιχεία)
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HALOT/BDB: עֶרְוַת – nudez, indecência sexual (cf. Lv 18)
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NA28, Matt 19:9
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Rahlfs LXX, Deut 24
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Qumran CD 4Q266 – proibição de poligamia e divórcio em sectarismo essênio

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