Por séculos, a narrativa de Eva como culpada da queda da humanidade moldou a teologia, a cultura e até a política. Pintada como fraca, desobediente e responsável pela morte, a mulher primordial foi marcada com um estigma que não encontra base no texto hebraico original.
Na verdade, ao contrário do que ensinam tradições posteriores, Eva não foi amaldiçoada por YHWH. O texto de Bereshit (Gênesis) 3 distingue claramente entre a serpente, que foi amaldiçoada (arur), e Eva, que foi punida — mas nunca associada à morte ou condenação eterna.
A serpente foi amaldiçoada. Eva, não
O hebraico bíblico é cirúrgico em sua escolha de palavras. A maldição (ארור — ’arur) aparece duas vezes no capítulo 3:
-
Gênesis 3:14: “Maldita és entre todos os animais...” – à serpente
-
Gênesis 3:17: “Maldita é a terra por tua causa” – como consequência da ação de Adão
Eva, por outro lado, ouve palavras de dor e subordinação, mas nenhuma maldição:
“Multiplicarei as dores da tua gravidez; com dor darás à luz filhos. Teu desejo será para o teu homem, e ele te dominará.” (Gn 3:16)
Em momento algum o texto diz: maldita és tu.
A morte não foi atribuída a Eva
Outro equívoco é imaginar que a morte física tenha vindo por causa de Eva. O texto é claro: a morte é o resultado da desobediência do casal — especialmente de Adão, que recebeu o mandamento diretamente:
“Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; pois no dia em que dela comeres, morrerás certamente.” (Gn 2:17)
Eva nem sequer estava presente quando esse mandamento foi dado. Ela só é formada depois, no verso 22.
Portanto, há uma responsabilidade textual primária atribuída ao homem.
Eva foi enganada, não rebelde
A acusação de rebelião voluntária contra YHWH, imputada a Eva por séculos, entra em colapso diante do testemunho do apóstolo Shaul (Paulo):
“Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão.”
1Timóteo 2:14
A palavra grega usada aqui é ἐξαπατάω (exapataō), que significa “enganar completamente”, “seduzir por falsidade”. Não é um ato de rebelião consciente, mas de ilusão.
Shaul, longe de condená-la, evidencia que Eva foi vítima — e, por isso mesmo, não carrega o mesmo tipo de responsabilidade.
Eva: “mãe de todos os viventes” — um título de honra
Após o incidente no Éden, Eva recebe de Adão um novo nome:
“E o homem chamou o nome de sua mulher Eva (חַוָּה – Chavah), porque ela era mãe de todos os viventes.” (Gn 3:20)
O nome “Eva” não vem de “vida” apenas por associação poética. A raiz chayah (חיה) está diretamente ligada à ideia de vivificar, preservar a vida, ser fonte de continuação. Em outras palavras, Adão reconhece em Eva o caminho da sobrevivência da humanidade — não sua ruína.
Não há desprezo. Não há culpa. Há reverência.
O evangelho escondido na resposta de YHWH
Em Gênesis 3:15, no que muitos chamam de protoevangelho, a sentença contra a serpente introduz uma profecia:
“E porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua semente e a semente dela; ela te ferirá a cabeça, e tu a ferirás no calcanhar.”
É notável: a promessa de redenção virá pela “semente da mulher”, não do homem.
Num contexto patriarcal, onde genealogias sempre passam pelo pai, esse detalhe é explosivo. Ele antecipa o nascimento de Yeshua sem linhagem masculina — e reconhece na mulher o canal da restauração, não da perdição.
O que os manuscritos antigos revelam sobre Eva?
Nos manuscritos do Mar Morto, especialmente em documentos como o Gênesis Apócrifo (1QapGen), Eva aparece com traços de sabedoria e dignidade. Em nenhum momento ela é tratada como vilã. Em Enoque (1En), que influenciou profundamente o pensamento do Segundo Templo, a origem do mal está nos anjos caídos, não em Eva.
Nos targumim aramaicos, como o Targum Yonatan, a culpa da queda é compartilhada — mas a ênfase ainda recai mais sobre a serpente e sobre o homem.
E nos escritos rabínicos mais antigos (pré-Mishnáicos), Eva é vista com nuances mais humanas, menos demonizadas. A vilificação extrema vem apenas nos séculos seguintes, especialmente com influências helenísticas e patrísticas.
As camadas teológicas que obscureceram Eva
Os pais da igreja cristã (Agostinho, Tertuliano, Jerônimo) deram o golpe final na reputação de Eva. Agostinho, em especial, associou a sexualidade à queda, vendo na mulher a fonte do “pecado original”. Daí surgem expressões como “Eva, a porta do inferno” — ideias alheias ao texto hebraico.
A partir daí, Eva passa a ser símbolo de fraqueza e corrupção — o que justifica, por exemplo, o silenciamento das mulheres nos cultos ou sua subordinação moral.
Nada disso tem base nos Escritos originais.
O impacto disso na mensagem de Yeshua
Yeshua nunca cita Eva diretamente, mas sua atitude com mulheres — samaritanas, adúlteras, hemorrágicas, discípulas — resgata a dignidade que o texto original já reconhecia.
Ele valida mulheres como testemunhas de sua ressurreição, algo impensável num sistema legal patriarcal.
Se Eva foi mãe dos viventes, Yeshua é o restaurador da vida — e ambos convergem no plano divino de redenção, sem que a mulher seja jamais culpada exclusiva pela morte.
Bloco Técnico
Texto Original – Gênesis 3:16
עֵצֶב תֵּלְדִי בָנִים
ʿēṣeḇ tēlēḏî bānîm
Tradução literal interlinear:
Com dor / darás à luz / filhos
Morfologia:
-
עֵצֶב (ʿēṣeḇ): substantivo masc. singular — dor, sofrimento
-
תֵּלְדִי (tēlēḏî): verbo Qal imperfeito 2ª f. sing. — tu darás à luz
-
בָנִים (bānîm): substantivo masc. plural — filhos
Grau de confiabilidade textual: A
(Baseado em BHS – Biblia Hebraica Stuttgartensia; códices Leningradensis e Aleppo)
Referências filológicas:
-
HALOT: עֶצֶב = dor física ou emocional
-
BDB: idem
-
Strong’s: H6093 (ʿēṣeḇ), H3205 (yalad), H1121 (ben)

Comentários
Postar um comentário