O Julgamento dos Vigilantes e o Tártaro Esquecido

A maioria das traduções modernas da Bíblia omite uma dimensão crítica da narrativa espiritual antiga: o aprisionamento dos Vigilantes — os anjos rebeldes — em uma região chamada “Tártaro”. Ao longo dos séculos, essa doutrina foi suprimida, hibridizada com mitos helênicos ou relegada ao imaginário apocalíptico. No entanto, a Escritura preservada revela com precisão onde, como e por que esses seres foram julgados — e o que isso tem a ver com a restauração final.

Este artigo investiga o julgamento celestial dos Vigilantes, seu encarceramento em regiões profundas e como a palavra “Tártaro” (τάρταρος) permanece viva no testemunho apostólico — embora escondida sob traduções eclesiásticas diluídas.

Leia também:

  • Os Nephilim Existiram? Ecos de Gênesis em Números e Judas
  • Yeshua e os Espíritos em Prisão: O Que Realmente Foi Pregado?
  • A Guerra nas Regiões Celestes e o Papel de Miguel

Quem são os Vigilantes?

O termo “Vigilantes” traduz o aramaico ʿiyyarim (עִירִין) — literalmente, “aqueles que vigiam” — e aparece em Daniel 4:13, 17 e 23, onde são apresentados como mensageiros espirituais que observam e intervêm no mundo dos homens. Nos escritos de Hanokh (Enoque), especialmente em 1 Hanokh (1 Enoque), esses Vigilantes tomam forma narrativa: anjos que desceram ao monte Hermon nos dias de Jared, corrompendo a criação ao coabitar com mulheres humanas (cf. Gn 6:1–4).

Essa união ilícita gera os Nephilim (נְפִלִים – "caídos" ou "gigantes") – Strong’s H5303 | Subst. masc. pl. – cuja violência precipita o Dilúvio. A origem dessa tradição está preservada não apenas nos apócrifos, mas em ecos intertextuais em Kepha (Pedro) e Yehudah (Judas), onde o julgamento desses seres é mencionado com precisão técnica e memória profética.

O Tártaro nas Escrituras

A chave para entender o destino dos Vigilantes está em 2 Kepha (2 Pedro) 2:4, onde a maioria das traduções diz:

"Deus não poupou os anjos que pecaram, mas lançou-os no inferno..." (NVI)

Ocorre que o termo traduzido como “inferno” é, no original grego, ταρταρώσας (tartarōsas) — aoristo de ταρταρόω, que significa literalmente “lançar no Tártaro”.

📘 Tártaro – τάϱταρος
• Strong’s G5020 | Verbo
• Única ocorrência no NT: 2 Pe 2:4
• Etimologia: termo técnico do grego antigo para o “abismo mais profundo” do submundo — abaixo do Hades

Essa palavra não é sinônimo de “Geena” (γέεννα – G1067) ou “Sheol” (שְׁאוֹל – H7585), mas refere-se a uma prisão especial para os bene Elohim que transgrediram limites ontológicos estabelecidos por YHWH.

A Peshitta síria preserva a expressão com o verbo ܐܫܕܐ (esheda) – "lançar, atirar", vinculado ao conceito de queda e aprisionamento.

Por que o Tártaro foi esquecido?

⚠️ A obscuridade do termo “Tártaro” na tradição cristã é fruto de múltiplas camadas:

  1. Tradutores latinos (Vulgata) evitaram o termo técnico, substituindo-o por generalizações como in infernum detruserit — “precipitou no inferno”, apagando a distinção do abismo.

  2. Doutrina agostiniana sistematizou o inferno como destino final das almas, tornando supérflua a existência de prisões espirituais intermediárias.

  3. Influência grega tardia reabsorveu o Tártaro como figura mitológica, não como realidade espiritual no plano da justiça celeste.

  4. Teologia reformada rejeitou o livro de Hanokh como apócrifo, enfraquecendo o vínculo entre Gênesis 6 e 2 Kepha 2.

Como resultado, o aprisionamento real dos Vigilantes — que sustentava a teologia do juízo cósmico e da restauração da ordem original — foi substituído por uma noção genérica de “castigo”.

O Julgamento como padrão

O texto de Yehudah (Judas) 6 ecoa o mesmo padrão:

“E aos malakhim (mensageiros) que não guardaram seu princípio, mas abandonaram sua própria morada, ele os guardou em prisões eternas, em trevas, até o juízo do grande dia.”

📘 “Princípio” – ἀρχή (archē) – G746: posição original de autoridade
📘 “Morada” – οἰκητήριον (oikētērion) – G3613: habitação espiritual

Aqui, Yehudah afirma que os anjos caídos estão presos não para sempre, mas “até o juízo” — indicando uma prisão temporária, mas real, onde aguardam o veredicto final.

Este padrão de julgamento de seres celestes antes dos homens aparece também em 1 Coríntios 6:3:

“Não sabeis que julgaremos os anjos?”

🧭 Trata-se de uma alusão direta ao juízo contra os Vigilantes e sua prole híbrida, cujas consequências ainda reverberam no mundo.

Hanokh, a Corte Celestial e o Anjo das Correntes

Em 1 Hanokh 10:4–6 (4QEnoch [4Q204]), Uriel recebe a ordem de amarrar Azazel — um dos principais líderes dos Vigilantes — e lançá-lo nas trevas, com pedras ásperas e fogo flamejante, “até o grande dia do juízo eterno”.

“Amarra Azazel, mãos e pés, e lança-o nas trevas... E cobre-o com pedras pontiagudas... para que fique lá eternamente até o dia do grande julgamento.” – 1 Hanokh 10:4–6

Esse é o mesmo quadro que 2 Kepha e Yehudah retomam — e que o Apocalipse visualiza como o “abismo” (ἄβυσσος – abyssos) de Ap 20:1, onde o Dragão também é aprisionado. A conexão é direta:

• Os Vigilantes estão no Tártaro
• O Dragão será trancado no mesmo abismo
• O juízo final libera e sela essas prisões

Retornar à Justiça de YHWH

A restauração da fé hebraica em Yeshua não ignora o mundo espiritual — ela o reordena com justiça. O julgamento dos Vigilantes não é uma fantasia apocalíptica, mas o protocolo divino de proteção da criação, marcando a diferença entre transgressão e redenção.

A omissão do Tártaro em traduções e teologias modernas não apaga sua realidade. Ele continua sendo uma prisão literal, onde a justiça de יהוה se manifesta contra o caos híbrido.

“Examinai tudo. Retende o que é bom.” (1Ts 5:21)
A restauração começa reconhecendo que nem todo mal é visível — mas todo juízo é verdadeiro.


Bloco Técnico

TermoTraduçãoStrong’sMorfologiaReferência
NephilimCaídos / GigantesH5303Subst. masc. pl.Gn 6:4
SheolMorada dos mortosH7585Subst. masc. sing.Sl 16:10
TártaroAbismo profundoG5020Verbo (aoristo pass.)2 Pe 2:4
ArchēPrincípio / RegênciaG746Subst. fem. sing.Jd 6
OikētērionHabitação espiritualG3613Subst. neut. sing.Jd 6
AbyssosAbismoG12Subst. fem. sing.Ap 20:1

Comentários