A palavra “Bíblia” vem do grego ta biblía (τὰ βιβλία), que significa literalmente “os livros”. Trata-se de uma coletânea de escritos diversos — históricos, poéticos, legais, proféticos e narrativos — produzidos por dezenas de autores ao longo de mais de mil anos. Esses textos foram escritos em diferentes línguas (hebraico, aramaico, grego koiné), sob diversos contextos geopolíticos, com agendas teológicas e literárias distintas.
Chamá-la de “livro sagrado” é uma definição posterior, fruto de um processo político e religioso que consolidou essa biblioteca como “unidade”. Mas originalmente, não era uma obra unificada nem fechada.
Quem decidiu o que entraria (e o que ficaria de fora)?
A definição de quais escritos seriam considerados “canônicos” (isto é, normativos para a fé e prática) foi um processo longo e conflituoso. No caso do chamado “Antigo Testamento”, o cânon hebraico (Tanakh) foi consolidado entre os séculos I e II d.C., após a destruição do Segundo Templo em 70 d.C. O critério rabínico excluiu livros considerados “apócrifos” ou “externos”, como 1Henoc, Jubileus e Sabedoria de Salomão.
Já o cânon cristão do “Novo Testamento” só começou a tomar forma no século II d.C., enfrentando disputas intensas. Textos como o Evangelho de Tomé, o Pastor de Hermas, o Apocalipse de Pedro e a Epístola de Barnabé foram, em certos momentos, aceitos por comunidades — e depois rejeitados. A lista de 27 livros só foi padronizada no século IV, nos concílios eclesiásticos de Hipona (393) e Cartago (397), mas mesmo aí sem unanimidade.
A divisão atual da Bíblia foi uma construção tardia
A Bíblia hebraica (Tanakh) é dividida em três partes: Torah (Lei), Nevi’im (Profetas) e Ketuvim (Escritos). Essa divisão é atestada já no século I d.C. (ver Lucas 24:44), mas sua ordem e número de livros variam entre tradições judaicas.
Já a Bíblia cristã (protestante) divide-se em “Antigo” e “Novo Testamento”, somando 66 livros (39 + 27). Católicos mantêm livros deuterocanônicos (como Tobias, Judite, Eclesiástico), totalizando 73. A Igreja Ortodoxa inclui ainda mais textos. Ou seja: não há uma “Bíblia” única, mas várias versões divergentes.
As vantagens: unidade narrativa e acesso popular
Apesar das origens fragmentárias, a Bíblia foi editada e transmitida de forma a criar uma metanarrativa coesa: da criação à redenção final. A canonização permitiu preservar textos valiosos, que de outra forma poderiam se perder.
Além disso, a tradução da Bíblia para línguas populares (a partir de Lutero, no século XVI) contribuiu decisivamente para a alfabetização, a crítica à autoridade religiosa e a formação de identidades nacionais.
As desvantagens: apagamentos, distorções e censuras
Por outro lado, o processo de canonização resultou em apagamentos históricos: textos judaicos antigos como o Livro de Enoque (amplamente citado em Qumran e em Judas 1:14), ou narrativas alternativas sobre Yeshua (como o Evangelho dos Hebreus) foram suprimidos.
Além disso, há alterações textuais documentadas nos manuscritos antigos — como interpolações doutrinárias e harmonizações artificiais. O próprio nome “Yeshua”, por exemplo, aparece transliterado como “Iêsous” (Ἰησοῦς), o que distorce sua identidade hebraica. As decisões editoriais refletiram interesses políticos e dogmáticos, nem sempre a fidelidade textual.
O que ficou de fora: os livros proibidos e esquecidos
Entre os textos excluídos ou relegados ao esquecimento estão:
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1Henoc, considerado inspirado por comunidades do Segundo Templo
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Jubileus, citado em Qumran e em debates rabínicos
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Evangelho dos Hebreus, usado por comunidades judaico-messiânicas
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Evangelho de Tomé, que preserva ditos originais atribuídos a Yeshua
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Didachê, manual comunitário anterior a muitas cartas paulinas
Esses escritos desafiam as versões oficiais, revelando um mosaico mais plural e diverso da fé original.
O impacto disso na leitura da mensagem original
Compreender que a Bíblia é uma coleção construída — com exclusões, disputas e interesses — não a desqualifica, mas exige leitura crítica. A busca pela verdade textual nos leva além da Bíblia tradicional, na direção dos manuscritos originais, das variantes antigas e dos contextos históricos e linguísticos que moldaram os Escritos.
É nesse solo que a fé em YHWH e em Yeshua encontra sua raiz mais profunda: não no dogma institucionalizado, mas na verdade revelada e registrada pelos primeiros discípulos, antes das distorções imperiais.
Bloco Técnico
Texto base: 2Timóteo 3:16 (alegadamente sobre a "inspiração das Escrituras")
Grego (NA28): πᾶσα γραφὴ θεόπνευστος καὶ ὠφέλιμος
Transliteração (SBL): pāsa graphḗ theópneustos kaì ōphélimos
Tradução literal: “Toda escritura [é] soprada por Elohim e útil”
Análise morfológica:
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πᾶσα (pāsa) – toda (feminino, singular, nominativo)
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γραφὴ (graphḗ) – escritura (fem. sing. nom.)
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θεόπνευστος (theópneustos) – inspirada/divinamente soprada (adjetivo)
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καὶ (kaì) – e
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ὠφέλιμος (ōphélimos) – útil, proveitosa (adj.)
Referências:
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BDAG: θεόπνευστος — “inspirado por Deus, literalmente ‘soprado por Deus’”
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NA28, códices: Sinaiticus, Vaticanus (sem variantes relevantes)
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Strong’s G2315: theopneustos
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HALOT/BDB: n/a (não se aplica ao grego)

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