O Que É Pecado? A Palavra Escondida na Bíblia Antes da Teologia Grega

A palavra “pecado” invoca imediatamente culpa, transgressão e punição — conceitos profundamente enraizados na cultura cristã ocidental. Mas nenhuma dessas ideias corresponde, em sua origem, ao que o texto hebraico e aramaico realmente diz.

Nos manuscritos mais antigos da Torá e dos Profetas, o termo mais usado é חַטָּאָה (ḥaṭṭā’āh) ou חֵטְא (ḥēṭ’) — e ambos derivam da raiz triliteral ח־ט־א (ḥ-ṭ-’), cujo sentido primário não é "transgredir" no sentido jurídico-moral, mas sim:

errar o alvo, falhar, não atingir o propósito.

Esse é um conceito radicalmente diferente. Em vez de pecado como quebra de uma lei moral, a Torá retrata pecado como falha em cumprir o propósito de criação — um desvio funcional, não apenas comportamental.

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A origem da ideia de “pecado mortal” é grega, não hebraica

A teologia posterior — especialmente a latina (Agostinho) e a escolástica (Tomás de Aquino) — importou categorias greco-romanas de delito, juízo e essência do mal. Isso cristalizou a noção de “pecado mortal”, separando os pecados em categorias jurídicas, o que nunca existiu na linguagem original dos Profetas ou de Yeshua.

Na Septuaginta (LXX), o hebraico ḥēṭ’ foi traduzido por ἁμαρτία (hamartía) — uma palavra grega que também significa "errar o alvo". A princípio, parecia uma boa aproximação. Mas a filosofia grega logo distorceu esse sentido, transformando “hamartía” em uma condição ontológica do ser humano — o que não tem paralelo no hebraico bíblico, onde o pecado é sempre ação, não natureza.

Qual o “pecado mais grave” nos Escritos Sagrados?

Essa pergunta só faz sentido dentro de sistemas jurídicos. Mas a Bíblia hebraica apresenta outro paradigma: o pecado mais grave é o que interrompe a relação com YHWH e desvia do Seu propósito.

Nos Profetas, o pecado mais condenado é:

עָוֹן (ʿāwōn) — iniquidade, perversão moral da justiça.

E o mais abominável, segundo o próprio YHWH:

Eles esqueceram a minha Torá e seguiram deuses estranhos.”
— Jeremias 2:13; Oséias 4:6

No ensino de Yeshua, isso é reafirmado:

Se não crerdes que Eu Sou, morrereis em vossos pecados.
— Yochanan (João) 8:24

O maior pecado, portanto, não é moral, mas epistemológico e relacional: não reconhecer a verdade de YHWH revelada em Seu Filho.

Onde aparece o termo “pecado” nos manuscritos originais?

Nos Manuscritos do Mar Morto (Qumran), especialmente no 1QS (Regra da Comunidade), o termo ḥaṭṭā’āh aparece com frequência, sempre em contextos funcionais: desvio do caminho, falha no pacto, impureza cerimonial.

Curiosamente, nunca aparece como uma “mancha da alma” ou “culpa hereditária”. Isso desmonta doutrinas como o "pecado original" agostiniano, ausente nos escritos hebreus e aramaicos do Segundo Templo.


O que Yeshua ensinou sobre pecado?

Yeshua nunca usou o termo “pecado” como condição herdada. Sua linguagem era funcional, concreta e relacional. Ele usava a raiz aramaica ḥ-ṭ-’ nos sentidos:

  • falhar no propósito de YHWH

  • causar escândalo ao próximo

  • endurecer o coração à verdade

Exemplo chave:

Vai, e não falhes mais” — João 8:11
No grego: μηκέτι ἁμάρτανε (mēketi hamartane)
No aramaico original (reconstruído):
“Lekh, vela toḥṭeʾ od.”
(Vai, e não erres mais.)

A doutrina do pecado foi moldada por Roma

Os sistemas penitenciais, indulgências, confissões auriculares e categorias de “pecado venial/mortal” foram construções eclesiásticas, solidificadas nos concílios romanos. Nada disso está nos textos originais.

Já Shaul (Paulo), em suas cartas originais em grego do koiné judaico, usa ἁμαρτία como "poder destrutivo" (Rm 7), mas sempre conectado à falha em cumprir a vontade de Elohim revelada na Torá — não como culpa inata.

O impacto disso na mensagem de Yeshua

Se pecado é errar o propósito, então salvação não é absolvição jurídica, mas restauração de função: voltar ao plano original do Criador.
Yeshua não veio apenas para “perdoar pecados”, mas para reconduzir cada ser humano ao centro da Vontade de YHWH.

Isso muda tudo.


Bloco Técnico

Texto original hebraico:
חַטָּאָה (ḥaṭṭā’āh), חֵטְא (ḥēṭ’), עָוֹן (ʿāwōn), פֶּשַׁע (pēshaʿ)

Transliteração SBL:
ḥaṭṭā’āh, ḥēṭ’, ʿāwōn, pēshaʿ

Tradução literal:
ḥaṭṭā’āh – erro, falha
ʿāwōn – perversão, torção
pēshaʿ – rebelião, quebra deliberada

Morfologia:
Substantivos femininos e masculinos derivados de raízes verbais
ח־ט־א (errar),
ע־ו־ן (desviar, perverter),
פ־ש־ע (rebelar)

Grau de confiabilidade textual: A
Manuscritos: BHS, DSS, LXX, NA28, Peshitta

Fontes filológicas:
HALOT, BDB, BDAG, DCH, Qumran Lexicon, Nestle-Aland 28, BHS, Peshitta Concordance

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