Quando a Voz Assusta: Teofanias no Antigo Testamento

No imaginário moderno, a voz divina é frequentemente associada a conforto, consolo e paz. Porém, nos textos antigos da Escritura, a presença de Elohim muitas vezes se manifesta com terremotos, trovões, fumaça e pavor. Por que a voz do Criador — que é ao mesmo tempo fonte de vida — causa tremor em quem a ouve? O que essas manifestações, chamadas de teofanias, revelam sobre a natureza da presença divina?

Este artigo investiga o fenômeno das teofanias no Tanakh (Antigo Testamento), com base nos manuscritos hebraicos e aramaicos, examinando a reação humana diante da “Voz” — Qôl (קֹול) – Strong’s H6963 | Subst. masc. sing. — de Elohim. A abordagem é textual, morfológica e profética. Buscaremos restaurar o sentido original dos encontros divinos diretos, muitas vezes atenuados por traduções modernas.

Leia também:

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O Pavor de Encontrar o Invisível

A primeira reação registrada ao som da voz divina é de medo. Em Shemot (Êxodo), ao pé do Sinai, o povo tremeu:

“E todo o povo viu os trovões (qôlot), os relâmpagos, o som da shofar e o monte fumegante; e vendo isso, tremeram e se mantiveram de longe.”
— Shemot (Êxodo) 20:18

A expressão usada para "trovões" aqui é plural de qôl — literalmente, “vozes” ou “sons”. O texto sugere que os “trovões” eram, de fato, múltiplas vozes — indicando talvez um fenômeno sonoro polifônico, que emana da presença divina. A experiência, longe de ser pacífica, é descrita como aterradora.

A Voz que Abala Montanhas

2.1 Qôl – A Palavra Audível da Presença

O termo qôl (קֹול) aparece mais de 500 vezes no Tanakh. Em contextos teofânicos, ele raramente está ligado a serenidade. É som que abala, que rasga o silêncio da criação e impõe temor:

  • Qôl YHWH ba-kôach – “A voz de YHWH com força” (Tehilim 29:4)

  • Qôl YHWH shôver arazim – “A voz de YHWH quebra os cedros” (Tehilim 29:5)

Tehilim (Salmos) 29 apresenta uma das descrições mais intensas do poder destrutivo da voz de YHWH, repetindo a expressão qôl YHWH sete vezes — estrutura que ecoa os sete dias da criação, sugerindo que a mesma voz que cria, também sacode.

2.2 Qolot no Sinai: A Multivocalidade de Elohim

Em Shemot 19:16, a manifestação é descrita com as seguintes palavras:

“E aconteceu que ao terceiro dia, ao amanhecer, houve trovões (qolot) e relâmpagos, e uma densa nuvem sobre o monte, e o som muito forte do shofar..."

Aqui, o plural qolot (קֹלֹת) pode ser lido como “vozes” — ecoando a tradição rabínica (cf. Midrash Shemot Rabbah 5:9), que ensina que a voz de YHWH se dividia em 70 idiomas, para que toda a humanidade a compreendesse. Mas esse milagre linguístico é acompanhado de terror: o povo recua.

Por Que Tememos a Voz?

A tradição hebraica não romantiza a teofania. Encontrar-se com Elohim é perigoso. A razão pode estar na própria condição humana pós-Éden: a consciência da separação torna a aproximação algo insuportável.

Em Devarim (Deuteronômio) 5:24-26, o povo implora a Moshe que ele seja o intermediário:

“Se continuarmos a ouvir a voz de YHWH nosso Elohim, morreremos.”

Esse temor não é rejeitado por YHWH — pelo contrário, é validado:

“Ouvi a voz das palavras deste povo... está certo tudo o que disseram.” (Dt 5:28)

O distanciamento da presença, portanto, não nasce da frieza divina, mas da fragilidade humana. A santidade é insuportável sem mediação.

Yeshua e a Voz que Divide

Nos Escritos Apostólicos, o padrão se mantém: a voz do céu continua provocando pavor. Em Yohanan (João) 12:28-30, uma voz ressoa dos céus:

“E a multidão que ali estava, ouvindo, dizia que tinha trovejado; outros diziam: um anjo lhe falou.”

A voz é confundida com trovão — o mesmo fenômeno do Sinai. A voz divina não é autoexplicativa para quem não tem ouvidos preparados. A revelação continua velada aos ouvidos destreinados.

Yeshua (ישוע) torna-se, assim, o novo mediador da teofania. Em Hebreus 12:18-24, o autor contrasta o monte Sinai, “cheio de fogo, trevas e tempestade”, com o “monte Tsion” (Sião), onde está Yeshua como mediador de uma nova aliança. A tensão permanece: a voz continua falando (Hb 12:25), e ainda exige temor.

A Voz que Se Torna Silêncio

Uma das teofanias mais profundas ocorre com Eliyahu (Elias), em 1Melakhim (1Reis) 19:11-12. Ele presencia vento, terremoto e fogo — mas Elohim não está neles. E então, vem o:

qôl demamah daqqah – “voz de silêncio sutil”
Strong’s H6963 + H1827 + H1851 | masc. sing.

A mesma qôl que antes trovejava, agora sussurra. A presença de Elohim não é menos temível no silêncio — apenas mais íntima. Ainda assim, Eliyahu cobre o rosto. A santidade, mesmo suave, continua avassaladora.

Precisamos Reaprender a Ouvir

A restauração da fé hebraica exige que recuperemos o temor diante da presença. A voz de YHWH não é entretenimento, nem palavra motivacional. É som que gera, que convoca, que separa, que julga. Precisamos de ouvidos que tremem, não de ouvidos que apenas consomem.

Yeshua ensinou que quem “é da verdade ouve a sua voz” (Jo 18:37). Mas ouvir não é apenas captar som — é se render ao impacto da presença. A teofania assusta porque expõe. A restauração começa quando deixamos de fugir e aprendemos a escutar, mesmo que a voz nos fira antes de nos curar.


Bloco Técnico

TermoTraduçãoStrong’sMorfologiaReferência
Qôl (קֹול)Voz / somH6963Subst. masc. singÊxodo 19:16; Salmo 29
Qolot (קֹלֹת)Vozes / trovõesH6963Masc. pluralÊxodo 20:18
Demamah (דְּמָמָה)Silêncio / quietudeH1827Subst. fem. sing1Reis 19:12
Daqqah (דַּקָּה)Suave / delicadoH1851Adj. fem. sing.1Reis 19:12
Shôver (שֹׁבֵר)Quebrar / despedaçarH7665Verbo qal part.Salmo 29:5
Qôach (כֹּחַ)Força / poderH3581Subst. masc. singSalmo 29:4

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