A doutrina da Trindade — que descreve uma divindade única em três pessoas coeternas: Pai, Filho e Espírito Santo — é um dos pilares teológicos mais aceitos no cristianismo institucional. Mas sua formulação oficial, longe de emergir do Tanakh (chamado de “Antigo Testamento”), foi consolidada tardiamente no Concílio de Niceia (325 EC) e refinada em Constantinopla (381 EC), sob forte influência imperial.
O que poucos sabem é que, antes de se tornar dogma, a noção de trindade já existia em múltiplas religiões antigas. Babilônia, Egito, Pérsia, Grécia e Roma possuíam tríades divinas estruturadas — o que levanta a pergunta inevitável: a trindade cristã é revelação profética ou assimilação pagã?
Leia também:
- YHWH é um: a base profética da unicidade
- O que é Ruach haQodesh? Sopro, não “pessoa”
- Bereshit 1:26: Elohim está falando com quem?
Exposição Técnica – O que diz a Bíblia Hebraica?
Nos manuscritos hebraicos anteriores ao século I — incluindo o Texto Massorético (TM), a Septuaginta (LXX) e os Manuscritos do Mar Morto (Qumran) — não há qualquer formulação explícita de uma divindade trina. Os nomes, atributos e ações de Elohim são apresentados em unidade radical, embora complexa.
A unicidade como fundação
O versículo central da fé hebraica é:
“Shema Yisrael, YHWH Eloheinu, YHWH echad.”
“Ouve, Israel: יהוה (YHWH) nosso Elohim, יהוה é um.”
— Devarim (Deuteronômio) 6:4
echad (um) – Strong’s H259 | adj. cardinal masc. sing.
Refere-se a uma unidade composta em alguns contextos (como “uma carne” em Gn 2:24), mas no contexto de Devarim 6:4, reforça a exclusividade e indivisibilidade de YHWH.
📘 LXX Deut 6:4:
“Ἄκουε, Ἰσραήλ· Κύριος ὁ Θεὸς ἡμῶν εἷς ἐστιν.”
(“Ouça, Israel: o Senhor nosso Deus é um só.”)
→ O termo grego εἷς (heis) é o numeral “um”, sem conotação de pluralidade de pessoas.
O uso de Elohim no plural
Muito se argumenta sobre o uso de Elohim (Poderoso[s]) – Strong’s H430, um substantivo morfologicamente plural, mas com verbos e pronomes no singular ao se referir a YHWH. Isso ocorre por plural majestático, e não como indicação de múltiplas pessoas na divindade. Exemplo:
“Bereshit bara Elohim...”
“No princípio criou Elohim...” (Gn 1:1)
– verbo bara (criou) está no singular: Strong’s H1254 | qal perf. 3ª masc. sing.
📘 LXX Gn 1:1 – ἐν ἀρχῇ ἐποίησεν ὁ Θεὸς (no singular)
Não há indício de pluralidade de agentes.
“Façamos o homem à nossa imagem”?
O texto de Bereshit (Gênesis) 1:26 é frequentemente citado:
“Façamos (נַעֲשֶׂה – naasê) o homem à nossa imagem...”
🔍 Porém, o versículo seguinte resolve a ambiguidade:
“E criou (וַיִּבְרָא – vayyivra) Elohim o homem à sua imagem...” (Gn 1:27)
→ Singular absoluto.
Conclusão textual: O plural no v.26 pode indicar:
• Plural majestático
• Inclusão da corte celestial (anjos), conforme padrão literário semítico
• Mas não pluralidade interna da divindade
⚠️ Nenhum manuscrito sugere pluralidade ontológica de YHWH.
Diagnóstico – Quando surgiu o conceito trinitário?
A palavra “trindade” (trinitas) foi introduzida por Tertuliano no séc. III EC, em latim, para tentar explicar a relação entre Deus, Jesus e o Espírito. Porém, essa terminologia não existe em nenhum manuscrito bíblico grego ou hebraico.
🏛️ Concílios trinitários:
• Niceia (325 EC): Jesus é “da mesma substância” do Pai (ὁμοούσιος)
• Constantinopla (381 EC): Espírito Santo adicionado como “terceira pessoa”
→ Nenhuma dessas fórmulas é baseada em texto hebraico.
📚 A teologia trinitária emerge da tentativa greco-romana de sistematizar a fé hebraica dentro das categorias filosóficas de Platão e Aristóteles. O Deus relacional, invisível e indivisível dos profetas foi reinterpretado à luz da metafísica helênica.
Revelação-Chave – A ausência trinitária na aliança original
Nenhuma das alianças descritas na Bíblia Hebraica (com Noach, Avraham, Israel, David) menciona pluralidade divina. A relação é sempre entre YHWH — indivisível — e seu povo.
📜 Os profetas ecoam esse padrão:
“Eu sou YHWH, e fora de mim não há salvador.” (Yesha’yahu / Isaías 43:11)
“Antes de mim nenhum el foi formado, e depois de mim nenhum haverá.” (v.10)
Não há espaço para múltiplas “pessoas divinas” dentro dessa afirmação.
Convocação – Retorno à unidade revelada
A restauração textual exige discernimento: o uso tardio de categorias como “trindade” impôs sobre o texto hebraico uma moldura alheia. A fé dos profetas era monoteísta, relacional, indivisível. O Pai é um. O Filho é revelação. A Ruach é o sopro. Mas não são três “pessoas” eternas coexistentes — essa linguagem não é dos profetas, mas dos concílios.
É tempo de retornar à fidelidade da aliança. O que foi revelado desde Bereshit é claro: YHWH é um.
Bloco Técnico
| Termo | Tradução | Strong’s | Morfologia | Referência |
|---|---|---|---|---|
| echad | um (unidade) | H259 | adj. cardinal masc. sing. | Dt 6:4 |
| Elohim | Poderoso(s) | H430 | subst. masc. pl. | Gn 1:1 |
| bara | criou | H1254 | qal perf. 3ª masc. sing. | Gn 1:1 |
| naasê | façamos | H6213 | qal imperf. 1ª pl. com. | Gn 1:26 |
| vayyivra | e criou | H1254 | qal perf. 3ª masc. sing. | Gn 1:27 |
| εἷς (heis) | um (grego) | G1520 | numeral masc. sing. | LXX Dt 6:4 |

Comentários
Postar um comentário