Mateus não escreve como memorialista, mas como repórter profético. Quando cita Jeremias — “Em Ramá se ouviu uma voz, choro e grande pranto; Raquel chorando por seus filhos, e não queria ser consolada, porque não existem” (Mt 2:18) — ele não apenas relembra uma tragédia, mas captura o eco vivo de um pranto que não se cala.
O detalhe escondido está no tempo verbal: a tradição traduziu como passado consumado. Mas o texto grego preserva a cena em andamento: Raquel continua chorando. Essa diferença muda a leitura de todo o episódio.
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Reconstruindo o cenário
O massacre de Belém
Herodes, chamado “o Grande”, reinava sob patronato romano. Ao ouvir dos magos (Mt 2:1-12) sobre o nascimento de um “rei dos judeus”, ordena a matança de meninos em Belém e arredores (Mt 2:16).
A narrativa é curta, mas seu peso é cósmico: o adversário tenta abortar a promessa antes de crescer.
Ramá e a memória de exílio
Por que Mateus cita Jeremias 31:15? Ramá era local de deportação para o exílio babilônico (Jr 40:1). Ali, prisioneiros eram reunidos antes de seguir para o cativeiro. Na visão do profeta, Raquel, matriarca que morreu no parto de Benjamim (Gn 35:19), é retratada chorando pelos filhos levados cativos. Sua sepultura, em Efrata, perto de Belém (1Sm 10:2), a liga geograficamente à cena.
Mateus associa a memória de Ramá com a tragédia de Belém: dois lutos que se encontram — o exílio e o massacre.
Base textual: uma voz que ainda ecoa
Texto grego de Mateus 2:18 (NA28)
φωνὴ ἐν Ῥαμᾷ ἠκούσθη, κλαυθμὸς καὶ ὀδυρμὸς πολύς· Ῥαχὴλ κλαίουσα τὰ τέκνα αὐτῆς, καὶ οὐκ ἤθελεν παρακληθῆναι, ὅτι οὐκ εἰσίν.
Análise verbal:
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ἠκούσθη (ēkousthē) – aoristo passivo indicativo, 3ª pessoa singular: “foi ouvido”. Evento fixado no passado.
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κλαίουσα (klaiousa) – particípio presente ativo, feminino singular: “chorando”. Ação em andamento, não concluída.
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ἤθελεν (ēthelen) – imperfeito ativo, 3ª pessoa singular: “não queria”. Estado repetido, não momentâneo.
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εἰσίν (eisin) – presente do verbo “ser/estar”: “não existem”. Situação atual, não apenas passada.
Texto hebraico de Jeremias 31:15
קוֹל בְּרָמָה נִשְׁמָע, נְהִי בְּכִי תַמְרוּרִים; רָחֵל מְבַכָּה עַל־בָּנֶיהָ, מֵאֲנָה לְהִנָּחֵם עַל־בָּנֶיהָ, כִּי אֵינֶנּוּ.
Termos-chave:
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נִשְׁמָע (nishmaʿ) – Nifal perfeito: “foi ouvido”, semelhante ao aoristo grego.
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מְבַכָּה (mevakkah) – particípio piel feminino singular: “está chorando intensamente”. Ação contínua.
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מֵאֲנָה (meʾanah) – qal perfeito: “recusou”, mas pode implicar recusa durativa.
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אֵינֶנּוּ (ʾenen(n)u) – construção negativa: “não está” / “não existe”.
🔍 Convergência (Classificação A): tanto hebraico quanto grego mantêm o presente contínuo do choro e o estado atual da ausência.
Origem da distorção
Quando a Vulgata latina verteu o texto (séc. IV):
“Vox in Rama audita est, ploratus et ululatus multus: Rachel plorans filios suos, et noluit consolari, quia non sunt.”
Jerônimo ainda preserva o particípio (plorans, chorando). Mas as traduções vernáculas, influenciadas pelo costume narrativo ocidental, converteram em pretérito perfeito:
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“chorou por seus filhos”
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“não quis ser consolada”
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“já não eram”
Esse nivelamento apagou a tensão entre passado e presente, transformando o pranto contínuo em memória estática.
O peso do tempo verbal
Não é epitáfio, é sirene profética
Mateus não descreve apenas um massacre antigo. Ele registra que o choro está sendo ouvido no seu presente. Raquel, símbolo de todas as mães que perderam filhos, ainda está chorando.
Intertextualidade com Jeremias
O profeta não encerra a visão no luto. Logo após o versículo da dor, vem a promessa:
“Assim diz YHWH: refreia a tua voz de choro… há esperança para o teu futuro, teus filhos voltarão do território inimigo” (Jr 31:16-17).
Mateus convoca essa mesma esperança: enquanto o choro ecoa, o Ungido preservado da espada de Herodes é o sinal do retorno prometido.
Impacto atual
De Belém ao século XXI
Se Mateus descreve um choro que ainda ecoa, então o texto denuncia todos os massacres posteriores:
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os pogroms contra judeus,
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os genocídios armênios,
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as crianças-soldado na África,
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os refugiados no Mediterrâneo,
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os abortos em massa nas nações modernas.
Cada lágrima materna ressoa na voz de Raquel. A leitura correta do tempo verbal torna Mateus não um cronista do passado, mas um jornalista que abre o microfone para o grito das gerações.
Evidência negligenciada
Ecos em Apocalipse
Em Ap 6:9-10, as almas dos mártires clamam debaixo do altar: “Até quando, Soberano?”
O presente contínuo de Mateus 2:18 encontra paralelo: vozes que não se calam até a restauração plena.
Reposição escatológica
Se Raquel chora em Ramá porque seus filhos não existem, a resposta messiânica é o anúncio da ressurreição: “Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima” (Ap 21:4). O tempo verbal presente não é casualidade gramatical — é chave escatológica.
Retorno à aliança
Ouvir o texto como presente vivo exige teshuvah (retorno). Não podemos fechar o versículo como epitáfio. Precisamos reconhecê-lo como denúncia contínua do adversário e convocação à esperança no Ungido que sobreviveu.
Yeshua, escapando do massacre, cumpre Jr 31:17: “teus filhos voltarão”. Ele é o Filho preservado, garantia de que nenhum pranto é definitivo.
Glossário
| Termo | Tradução literal | Strong’s | Morfologia | Referência |
|---|---|---|---|---|
| κλαίουσα | chorando | G2799 | Part. pres. at. fem. sing. | Mt 2:18 |
| ἠκούσθη | foi ouvido | G191 | Aor. pass. ind. 3ª sing. | Mt 2:18 |
| εἰσίν | são / existem | G1510 | Pres. ind. 3ª plural | Mt 2:18 |
| נִשְׁמָע | foi/é ouvido | H8085 | Nifal perf. 3ª masc. sing. | Jr 31:15 |
| מְבַכָּה | chorando intensamente | H1058 | Part. piel fem. sing. | Jr 31:15 |
| אֵינֶנּוּ | não existe | H369 | Negação existencial | Jr 31:15 |

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