Teofanias no Antigo Testamento: Quando a Voz de Elohim assusta em vez de consolar

No deserto do Sinai, segundo o relato de Shemot/Êxodo 19–20, não houve ternura: houve tremor. O povo reunido ao pé da montanha experimentou trovões, relâmpagos, fumaça e o som de shofar crescendo em intensidade. Quando Elohim falou, a reação coletiva não foi consolo, mas pavor:

“E todo o povo via os trovões, e as chamas, e o som do shofar, e o monte fumegando; e vendo isto o povo, tremeu e se pôs de longe” (Êx 20:18, TM).

A cena, transmitida tanto pelo Texto Massorético (TM) quanto pela Septuaginta (LXX), deixa claro: a voz divina foi tão avassaladora que o povo suplicou a Moshe que se tornasse mediador, pedindo para não mais ouvir diretamente Elohim.

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Quando o encontro direto gera recuo

As teofanias – manifestações de YHWH percebidas por humanos – no Antigo Testamento não seguem um padrão de suavidade espiritual. Em muitos casos, causam terror, desfalecimento e até risco de morte.

  • Gênesis 15: Avraham, ao ver a “escuridão de grande terror” (אֵימָה חֲשֵׁכָה g’dolah – “pavor profundo”), quase desfalece quando Elohim sela a Aliança.

  • Juízes 6: Gideon, após a visita do Malakh YHWH, teme morrer: “Ai, Adonai YHWH! Pois vi o Anjo de YHWH face a face” (Jz 6:22).

  • Isaías 6: o profeta, diante da visão do trono e serafins, grita: “Ai de mim! Estou perdido” (נִדְמֵיתִי nidmeiti – “fui aniquilado”).

Essas passagens sugerem que, diante da irrupção do Sagrado, a primeira reação humana é desintegração existencial.

O Sinai: um contrato selado pelo medo?

A revelação da Torah no Sinai (Êxodo 19–20; Deuteronômio 5) é paradigmática. O texto preserva uma tensão entre proximidade e distanciamento.

  • O Texto Massorético destaca que o povo “viu os sons” (רֹאִים אֶת־הַקּוֹלֹת ro’im et haqolot). Trata-se de uma experiência sinestésica, em que a audição é percebida pela visão, indicando desorientação sensorial.

  • A LXX traduz “ouvindo o povo as vozes”, suavizando o efeito, mas preservando o contexto de medo.

Os manuscritos de Qumran (DSS), especialmente 4QDeutn e 4QExod-Levf, confirmam variantes próximas ao TM, reforçando a estranheza do evento.

O impacto foi tão grande que o povo exigiu: “Fala tu conosco, e ouviremos; e não fale Elohim conosco, para que não morramos” (Êx 20:19).

Aqui, a voz divina não é o alívio, mas a ameaça. A mediação de Moshe não surge de teologia abstrata, mas de sobrevivência.

A pedagogia do assombro

Por que Elohim se revela de modo aterrador?

  1. Afirmação de soberania cósmica: As teofanias vinculam YHWH não apenas ao pacto ético, mas a um poder cósmico incontrolável.

  2. Distanciamento ontológico: O abismo entre Criador e criatura é explicitado.

  3. Formação comunitária: O medo coletivo funciona como cimento social, vinculando o povo a uma obediência que não se baseia apenas em amor, mas em reverência extrema.

Arqueologia e eco histórico

Achados como a Estela de Merneptah (c. 1208 a.C.), primeira menção extrabíblica a “Israel”, mostram que já no século XIII a.C. grupos identificados com YHWH existiam sob pressão de impérios. O medo inscrito nas teofanias pode refletir essa realidade histórica: o sagrado se apresentava não como consolo, mas como força avassaladora em meio à fragilidade política.

No registro das tradições do Antigo Oriente Próximo, também é comum a deidade impor sua presença por meio de fenômenos naturais: trovões, terremotos, fogo. A Bíblia, porém, intensifica esse efeito na linguagem de aliança.

Impacto global

A imagem popular de Elohim como consolador contrasta com os relatos mais antigos, onde o encontro direto significa risco de morte. As teofanias não suavizam: abalam, desestabilizam, impõem limites.

A tradição posterior, nos Escritos Apostólicos, recorda essa ambivalência: “O nosso Elohim é fogo consumidor” (Hb 12:29), retomando o Sinai como paradigma.

A investigação revela que, longe de ser um mero detalhe, esse traço moldou a teologia da mediação, a liturgia e até a transmissão das Escrituras. O assombro diante da voz divina está na raiz da fé de Israel.


Glossário

  • Teofania | Manifestação perceptível de Elohim | – | – | Diversos contextos

  • קול qol | Voz, som | Strong’s H6963 | Substantivo masculino | Êx 19–20

  • אֵימָה eimah | Terror, espanto | Strong’s H367 | Substantivo feminino | Gn 15:12

  • נִדְמֵיתִי nidmeiti | Estou aniquilado, destruído | – | Verbo nifal, perfeito 1ª sing. | Is 6:5

  • רֹאִים אֶת־הַקּוֹלֹת ro’im et haqolot | “Vendo os sons” | – | Estrutura sinestésica rara | Êx 20:18

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