No coração do relato do Éden, em Bereshit/Gênesis 3:8, surge uma expressão que há séculos divide tradutores e teólogos:
“E ouviram a voz de YHWH Elohim, andando no jardim, na viração do dia...”
O termo hebraico usado – לְרוּחַ הַיּוֹם (leruaḥ hayyom) – tem sido traduzido de formas divergentes: “viração do dia”, “vento fresco da tarde”, “sopro da brisa”, ou até “tempestade do dia”.
A disputa não é mero detalhe poético. Ela toca no núcleo da teologia: YHWH desceu ao Éden em juízo tempestuoso ou em encontro de comunhão suave?
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A palavra-chave: ruaḥ (רוּחַ)
No hebraico bíblico, ruaḥ (Strong’s H7307) tem um leque semântico amplo:
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Vento / sopro atmosférico
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Espírito / essência vital
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Impulso emocional (ira, coragem, abatimento)
No texto de Bereshit 3:8, o substantivo aparece com artigo definido (haruaḥ), vinculado a hayyom (“o dia”).
O problema está em saber se o construto significa:
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“Vento fresco do dia” – leitura que sugere um entardecer brando (conforme Septuaginta: πνεῦμα τὸ δειλινόν, “sopro da tarde”);
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“Tempestade do dia” – interpretação que enfatiza o ruaḥ como força destrutiva (cf. usos em Êx 10:13; Is 30:28);
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“Espírito do dia” – possibilidade interpretativa menos usual, mas atestada em leituras targúmicas, associando ruaḥ à presença judicial de Elohim.
A variante grega: a suavização da cena
A Septuaginta (LXX) verte leruaḥ hayyom como πνεῦμα τὸ δειλινόν (“vento da tarde”). Essa leitura estabeleceu a base para a tradição latina (ad auram post meridiem – Vulgata) e, por extensão, para as traduções modernas como “viração do dia” (ARC) ou “brisa do entardecer” (NVI).
Contudo, críticos textuais observam que a escolha da LXX suaviza a cena: em vez de Elohim vindo em juízo após a transgressão, apresenta-se um passeio amistoso.
O peso dos Targumim e do Midrash
Nos Targumim aramaicos, a cena recebe uma tintura mais densa:
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Targum Onkelos: traduz de forma neutra (“na brisa do dia”);
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Targum Pseudo-Jônatas: insere a ideia de uma “voz de Palavra” (Memra) que se manifestava como fogo ardente.
Já no Midrash Bereshit Rabbah (19:7), há registro de interpretação de que ruaḥ hayyom indica o “dia do juízo”, quando Elohim confronta a humanidade.
Filologia e crítica textual
Segundo Gesenius e HALOT, ruaḥ pode designar desde uma brisa suave até uma tempestade avassaladora. O determinante contextual é a narrativa:
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Após a desobediência, seria lógico esperar teofania judicial;
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Mas o narrador pode ter escolhido deliberadamente um ambiente cotidiano (brisa da tarde) para contrastar com o peso da queda.
Classificação acadêmica:
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Leitura “brisa suave” → Convergência (A) nas tradições LXX e Vulgata.
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Leitura “tempestade/julgamento” → Parcial (B), sustentada por paralelos semânticos e leitura midráshica.
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Leitura “espírito do dia” → Interpretativa (C), eco de exegese mística.
Implicações teológicas
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Se brisa suave: o Éden se torna palco de intimidade quebrada, Elohim buscando o homem em tom pastoral.
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Se tempestade: a cena se reveste de tribunal cósmico, Elohim descendo como juiz, não como companheiro.
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Se espírito do dia: a expressão ganha caráter escatológico, antecipando o “dia de YHWH” como momento de prestação de contas.
Cada escolha tradutória molda a imagem de Elohim: Pai relacional, Juiz cósmico ou Manifestação escatológica.
Evidências arqueológicas
Inscrições ugaríticas (século XIII a.C.) associam o termo cognato ruḥu a ventos tempestuosos enviados por divindades como Baal. Em contrapartida, textos mesopotâmicos frequentemente descrevem os deuses caminhando no jardim sob “ventos suaves”.
Isso mostra que o termo carregava ambivalência cultural no antigo Oriente Próximo: força de destruição ou ambiente de encontro.
Conclusão
A “viração do dia” não é detalhe poético. É ponto de virada que molda nossa compreensão de quem é Elohim no Éden: um juiz que vem com o estrondo da tempestade, ou um companheiro que procura seus filhos ao cair da tarde.
O hebraico deixa o campo aberto. Cada tradução revela mais sobre a teologia de quem traduz do que sobre o texto em si.
A cena permanece em suspensão, ecoando a pergunta que não envelhece:
“Onde estás?”
Glossário
- Ruaḥ | Vento, sopro, espírito | Strong’s H7307 | Subst. fem. sg. c/ art. | Gn 3:8
- Hayyom | O dia | Strong’s H3117 | Subst. masc. sg. c/ art. | Gn 3:8
- πνεῦμα (pneuma) | Sopro, espírito | — | Subst. neutro sg. | LXX Gn 3:8
- Auram (Latim) | Brisa, vento | — | Acusativo sg. | Vulgata Gn 3:8

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