Portais da Alma: Olhos e Ouvidos na Bíblia como Caminhos de Vida ou de Queda

Jesus advertiu: “Se o teu olho for singelo, todo o teu corpo será luminoso” (Mateus 6:22). O termo grego usado é haploûs (ἁπλοῦς), que significa “simples, íntegro, sem dobras”. A ideia é que o olhar pode ser um filtro puro ou corrompido. Já no hebraico bíblico, o “olho bom” é chamado ‘ayin ṭôb (עַיִן טוֹב, literalmente “olho generoso”), em contraste com ‘ayin ra‘ (olho mau, invejoso ou ganancioso). O Novo Testamento ecoa essa tradição judaica: visão reta gera corpo cheio de luz, visão corrupta produz trevas interiores.

No contexto histórico judaico, o “olho bom” significava alguém que enxergava a vida com gratidão e partilha, enquanto o “olho mau” era símbolo de avareza e destruição comunitária. Jesus, portanto, não fala de anatomia, mas de ética perceptiva: o modo como vemos o mundo molda nossas ações. A visão não é neutra, é ato moral.

No mundo moderno, em que somos bombardeados por imagens — publicidade, telas, pornografia, consumismo — o alerta de Jesus torna-se mais radical. Quem controla o olhar controla o corpo inteiro: saúde mental, escolhas e até espiritualidade. A Bíblia mostra que visão não é apenas fisiologia, mas portal de valores.

Ouvindo Vozes: Discernimento ou Engano

Paulo escreve: “A fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo” (Romanos 10:17). O verbo grego akoḗ (ἀκοή) significa tanto “audição” quanto “mensagem recebida”. Assim, ouvir é mais que captar sons: é internalizar narrativas. Já no hebraico, o verbo šāma‘ (שָׁמַע) abrange “ouvir, escutar e obedecer”. Ouvir na Bíblia é obedecer, não apenas registrar.

Historicamente, Israel foi um povo de tradição oral. O Shema‘ Israel (Deuteronômio 6:4) — “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor” — marcava a identidade nacional. Escutar significava aliança. Porém, os profetas também denunciavam ouvidos fechados: Jeremias fala de um povo com “orelhas incircuncisas” (Jeremias 6:10), incapaz de ouvir a verdade. Assim, a audição é campo de batalha espiritual.

No presente, vivemos saturados de vozes: redes sociais, gurus, mídia, desinformação. O mesmo ouvido que pode acolher a Palavra pode também ser capturado por narrativas de dúvida, ódio ou sedução. A Bíblia antecipa essa luta: ouvidos mal afinados se tornam portas abertas à queda.

Imagens e Sons: A Convergência do Perigo

No Éden, a serpente falou (audição) e Eva viu que o fruto era agradável aos olhos (visão) — combinação fatal (Gênesis 3:6). O primeiro pecado não foi apenas um ato, mas um processo sensorial: ouvir uma narrativa distorcida e olhar com desejo. A Bíblia mostra, assim, que os sentidos podem se alinhar para o bem ou para o mal.

Na história de Israel, os ídolos sempre são descritos como imagens visíveis (Salmo 115:5-6), mas impotentes: têm boca e não falam, ouvidos e não ouvem, olhos e não veem. Em contraste, o Deus de Israel fala e vê. A idolatria é confiar em sentidos enganados; a fé bíblica é confiar no Deus vivo, que não pode ser reduzido a objeto visível ou som vazio.

Hoje, a convergência é digital: imagens e sons fundem-se em redes sociais e realidade virtual. O processo é o mesmo do Éden: ver o desejável, ouvir a narrativa sedutora. A Escritura revela que o perigo é antigo, apenas com roupagem tecnológica.

A Vigilância dos Portais

A Bíblia apresenta olhos e ouvidos como portais da alma. O olhar pode iluminar ou cegar; o ouvido pode fortalecer ou corromper. Jesus, ecoando a tradição hebraica, não deu conselhos místicos, mas diagnósticos existenciais: quem vigia seus portais vive na luz; quem os entrega à manipulação mergulha em trevas.

O desafio é direto: o que você tem visto? O que você tem ouvido? A Bíblia insiste que esses dois sentidos moldam destino. Mais do que nunca, cabe ao leitor testá-los pela Escritura. Não confie apenas no que dizem; abra a própria Bíblia, ouça suas palavras, veja suas imagens. Só assim os portais se tornam caminhos de vida, não de queda.

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