A Serpente do Éden Tinha Nome?

Nenhum dos manuscritos hebraicos massoréticos, samaritanos ou fragmentos de Gênesis encontrados em Qumran (4QGen, 1QGen) traz um nome próprio para a serpente que seduz Hawwah (Eva) no Éden. No entanto, a ausência de um nome explícito levanta uma pergunta fundamental: trata-se de um anonimato original ou de um apagamento deliberado?

A forma hebraica usada no início de Gênesis 3 é הַנָּחָשׁ (hanachash), “a serpente”. A partícula ה indica artigo definido, o que sugere que o autor considerava a serpente como figura conhecida — talvez já presente no imaginário ou no ciclo narrativo original.

Essa construção — uso do artigo definido sem nome próprio — é incomum quando se trata de personagens ativos e falantes. Por exemplo, הַנָּבִיא (“o profeta”) geralmente precede nomes como Eliyahu ou Yirmeyahu. O fato de Gênesis 3 tratar a serpente como figura plenamente atuante (fala, argumenta, interpreta o mandamento de Elohim) mas sem nome, sugere algo mais complexo do que uma simples omissão.

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O nome “Satan” aparece em Gênesis 3?

Nenhuma variante textual legítima, seja do hebraico massorético (MT), do Pentateuco Samaritano ou das versões aramaicas (Targum Onkelos, Targum Yerushalmi), associa a serpente com Satan ou ha-satan (הַשָּׂטָן) em Gênesis 3.

A primeira aparição do termo שָּׂטָן como entidade adversária ocorre apenas em 1 Crônicas 21:1 e no livro de Jó, como uma função dentro da corte divina. Nos textos mais antigos, satan não é um nome, mas um título (acusador, adversário). Sua ausência total em Gênesis 3 desmonta a interpretação teológica posterior que conecta diretamente a serpente ao Satanás cristão.

Essa associação aparece pela primeira vez de forma sistemática no Apocalipse de João (Ap 12:9), onde o autor combina quatro entidades em uma só figura: “a antiga serpente, chamada diabo, e Satanás, que engana o mundo inteiro”. Isso representa uma fusão tardia e teológica, não textual.

O que dizem os manuscritos do Mar Morto?

Fragmentos de Gênesis em Qumran (especialmente 4QGen-Exod a e b) preservam partes de Gênesis 3. A grafia e a estrutura mantêm a designação הנחש sem qualquer glosa identificando a serpente como Satanás ou qualquer outro ser celestial.

Mais relevante ainda é a ausência de qualquer comentário ou expansão angelológica — o que contrasta com outros textos sectários de Qumran que são ricos em nomes de anjos e demônios. Isso indica que a comunidade do Deserto não via a serpente de Gênesis 3 como uma entidade com identidade celestial nomeada.

Literaturas paralelas revelam um nome oculto?

No Livro de Enoque (1Enoch), há descrições de entidades espirituais corrompedoras, como Azazel e Semihazah, mas nenhuma referência direta à serpente do Éden. Já o Apocalipse de Abraão (cap. 23), texto judaico do século I-II d.C., associa a serpente ao anjo caído Samael, chamando-o de “o sedutor do Éden”. Essa associação, porém, não é filológica, mas interpretativa — e não se baseia em Gênesis, mas em reinterpretações apocalípticas.

Outros textos pseudepigráficos judaicos, como Jubileus e Testamento de Adão, identificam a serpente com Mastema, outro nome angelológico posterior, associado ao mal. Nenhuma dessas fontes, no entanto, retroage ao texto de Gênesis 3 com autoridade manuscrita original.

A etimologia de “nachash” revela algo oculto?

O termo נָחָשׁ (nachash) é polissêmico. Embora geralmente traduzido como “serpente”, a raiz נ־ח־ש (nachash) também pode significar “encantar”, “adivinhar” ou “praticar feitiçaria” (cf. Gênesis 44:5, “ele adivinha por meio do cálice” — נַחֵשׁ יְנַחֵשׁ).

Essa ambiguidade levanta a hipótese de que a serpente não seria apenas um animal, mas uma personificação de inteligência e manipulação — alguém com capacidades espirituais de sedução e conhecimento oculto.

O Targum Pseudo-Jonathan reforça isso ao descrever a serpente como um ser que “era semelhante a um camelo e falava com linguagem humana”, o que reflete uma tradição judaica extracanonical que atribui inteligência e fala à serpente antes da maldição.

A arqueologia confirma alguma tradição sobre a serpente nomeada?

Em sítios da antiga Mesopotâmia e Canaã, foram encontradas representações da deusa Ningishzida e da entidade Enki com serpentes simbólicas associadas à sabedoria e ao conhecimento. Placas sumérias retratam uma serpente em uma árvore com figuras humanas — imagens que ecoam o cenário de Gênesis 3.

No entanto, esses paralelos iconográficos não fornecem um nome específico para a serpente de Gênesis. Eles apenas indicam que a figura da serpente como portadora de conhecimento proibido era culturalmente difundida na Antiguidade — algo que pode ter influenciado ou sido reelaborado no texto hebraico.

Conclusão: um anonimato carregado de intenção

Gênesis 3 não nomeia a serpente. Mas seu anonimato não é casual. Trata-se de uma figura que fala, interpreta, contradiz Elohim e seduz — mas permanece sem nome. Nenhum manuscrito hebraico ou versão aramaica anterior ao século I d.C. adiciona qualquer nome à serpente.

A tradição posterior cristã, ao nomeá-la como Satanás, rompe com o anonimato intencional do texto original. Esse silêncio textual é, talvez, mais revelador do que qualquer nome: a serpente não precisa ser nomeada para ser perigosa. Ela é o símbolo por excelência da astúcia não identificável — o mal que seduz sem identidade.


Bloco Técnico

Texto original (Gênesis 3:1a)
וְהַנָּחָשׁ הָיָה עָרוּם מִכֹּל חַיַּת הַשָּׂדֶה

Transliteração SBL
Ve-hannāḥāš hāyâ ‘ārûm mi-kol ḥayyat haśśādeh

Tradução interlinear literal
E a serpente era astuta mais que todo animal do campo

Análise morfológica

  • וְ (ve) — conjunção "e"

  • הַנָּחָשׁ (hanachash) — “a serpente”; artigo definido + substantivo comum masc. sing.

  • הָיָה (hayah) — verbo "era", Qal perf. 3ª masc. sing.

  • עָרוּם (arum) — “astuto”; adj. masc. sing.

  • מִכֹּל (mikkol) — “mais que todos”; preposição + kol (todo)

  • חַיַּת (chayyat) — "animal de"; construto fem. sing. de chayyah

  • הַשָּׂדֶה (hasadeh) — “o campo”; artigo definido + substantivo masc. sing.

Grau de confiabilidade textual: A (texto bem preservado e sem variantes significativas em fontes primárias)

Referências filológicas

  • HALOT: נָחָשׁ I (serpente), II (praticar adivinhação)

  • BDB: נָחָשׁ — serpent; diviner

  • BDAG: s.v. "ὄφις" (serpente, mas usado simbolicamente em LXX e Apocalipse)

  • BHS: Genesis 3 apparatus

  • Nestle-Aland 28: Apocalipse 12:9

  • Rahlfs LXX: Gen 3:1 — ὁ ὄφις ἦν φρονιμώτατος

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