Filhos de Elohim e a Queda Cósmica em Gênesis 6

O sexto capítulo de Bereshit (Gênesis) preserva um dos relatos mais enigmáticos e desconcertantes de toda a Escritura. Ali se menciona que os “filhos de Elohim” tomaram para si “as filhas dos homens”, gerando uma descendência híbrida que precede diretamente o juízo do Dilúvio. Por séculos, esse trecho foi suavizado ou alegorizado por tradições teológicas que tentaram minimizar sua dimensão sobrenatural. Mas os manuscritos antigos, a análise lexical e os ecos proféticos traçam um cenário muito mais profundo: o de uma rebelião cósmica envolvendo seres celestiais, uma invasão genética e a contaminação deliberada da criação de יהוה (YHWH).

Este artigo investiga a fundo a base textual e histórica dessa narrativa esquecida, a partir da leitura intertextual entre Tanakh e Escritos Apostólicos, e evidencia como essa queda anterior ao Éden ainda reverbera nos destinos da humanidade.

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A narrativa silenciada

Na tradição judaico-helenista e nos escritos do Segundo Templo, o relato de Bereshit 6:1-4 era interpretado literalmente como uma transgressão de seres celestiais. No entanto, a partir do século IV d.C., essa leitura foi gradualmente abafada por escolas teológicas que buscavam alinhar a cosmovisão bíblica com uma metafísica platônica, que negava a possibilidade de interação física entre planos distintos.

Mas a Escritura permanece. E os ecos dessa transgressão ressoam não apenas nos escritos apócrifos, mas também em passagens de 2 Keifa (Pedro) e Yehudah (Judas), que testemunham uma queda anterior à de Adam, protagonizada por seres espirituais.

Base textual e manuscritos

Texto base (Bereshit 6:1–4)

“E aconteceu que, quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, os filhos de Elohim viram que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres, de todas as que escolheram.”
— Bereshit 6:1–2

Termos-chave:

  • Benei haElohim (Filhos de Elohim)בְּנֵי הָאֱלֹהִים | Strong’s H1121 + H430 | Subst. masc. pl. construto + subst. masc. pl.

  • Vayiqchu (tomaram para si)וַיִּקְחוּ | Strong’s H3947 | Qal imperfeito 3ª masc. pl.

  • Nephilim (caídos)נְפִלִים | Strong’s H5303 | Subst. masc. pl.

Traduções restauradas vs. comuns

Tradução comum (ex: Almeida)Tradução restaurada
“filhos de Deus”“filhos de Elohim”
“gigantes”“caídos” / nephilim

🔍 Nota semântica: O termo nephilim não significa “gigantes” por definição. Deriva da raiz npl (נפל) — cair, descer, tombar. O sentido original é "os caídos", não necessariamente de estatura física, mas de condição espiritual.

A origem da distorção

A alegorização dos benei haElohim como “descendentes piedosos de Sete” surgiu entre os séculos III e IV d.C., principalmente em ambientes patrísticos que rejeitavam a ideia de seres espirituais possuírem corpos físicos ou interferirem na criação humana. Essa releitura — chamada linha setita — foi impulsionada por Agostinho e Orígenes, sob influência de paradigmas neoplatônicos.

🏛️ Essa transição hermenêutica não surgiu do texto — mas de uma tentativa de harmonizar a Bíblia com a filosofia grega.

Contudo, os manuscritos mais antigos e literatura judaica anterior a Yeshua sustentam outra visão:

1. Manuscritos do Mar Morto (4QEnoch, 4QGenAp)

  • Descrevem os Vigilantes (Gr. ἐγρήγοροι) como anjos caídos que se uniram a mulheres humanas e ensinaram artes proibidas à humanidade.

  • 1 Enoch 6–10 apresenta um eco direto de Bereshit 6.

2. LXX – Septuaginta

  • Traduz benei haElohim como "οἱ υἱοὶ τοῦ θεοῦ" — filhos do Deus, mantendo o sentido celestial.

  • O termo gigantes foi traduzido como γίγαντες, mas nos manuscritos mais antigos isso reflete uma tradição interpretativa, não a raiz hebraica.

3. Escritos Apostólicos

  • 2 Keifa 2:4: “Porque Elohim não poupou os anjos que pecaram, mas lançou-os no Tártaro…”

  • Yehudah 6: “...os anjos que não guardaram seu domínio original, mas abandonaram sua morada, ele tem guardado em prisões eternas.”

🧭 Ambos os textos fazem alusão clara ao episódio de Bereshit 6, em conexão com Enoch e o Dilúvio.

A contaminação pré-diluviana

O objetivo dos benei haElohim não era apenas o prazer sexual: era corromper a linhagem humana, interferindo na criação de Elohim. Essa leitura é reforçada em:

  • Bereshit 6:12 – “Toda carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra.”

  • 1 Enoch 15 – Os espíritos dos nephilim tornam-se os “espíritos malignos” que habitam entre os homens.

🧠 Segundo essa tradição, o Dilúvio não foi apenas resposta à violência humana, mas um ato de purificação genética e espiritual da criação.

A conexão messiânica esquecida

Se a queda dos benei haElohim visava corromper a humanidade, a vinda de Yeshua (Ungido) é apresentada pelos apóstolos como uma resposta direta:

“Pois também o Mashiach morreu uma única vez pelos pecados… tendo sido vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão.”
— 1 Kefa (Pedro) 3:18–19

🔍 Interpretação plausível, não consensual: Essa proclamação aos “espíritos em prisão” pode referir-se aos próprios anjos caídos de Bereshit 6, selando sua condenação e anunciando a restauração do plano original.

Retorno à aliança incorruptível

A restauração começa pela verdade textual. Negar a realidade sobrenatural descrita em Bereshit 6 é suprimir uma peça-chave da cosmovisão bíblica. Essa queda cósmica não é mito antigo — é a matriz da corrupção que gerou os dias de Noach, aos quais Yeshua comparou os últimos tempos:

“Como foi nos dias de Noach, assim será a vinda do Filho do Homem.”
— Mattityahu (Mateus) 24:37

A geração final se verá diante das mesmas forças espirituais que operaram naquela era. Negar sua existência é abrir mão da vigilância e do discernimento. Só a aliança com יהוה, selada pelo sangue do Ungido, nos preserva de repetir a queda.


Bloco Técnico

TermoTraduçãoStrong’sMorfologiaReferência
Benei haElohimFilhos de ElohimH1121 + H430Subst. masc. pl. construto + subst. masc. pl.Gn 6:2
NephilimCaídosH5303Subst. masc. pl.Gn 6:4
YaradDescer / CairH3381Verbo QalGn 11:5
SheolSepultura / mundo dos mortosH7585Subst. fem. sing.Sl 16:10

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