A terra era tohu: caos ou campo de operação divina?

A frase “a terra era sem forma e vazia” (tohu va-bohu) foi, por séculos, interpretada como sinônimo de caos absoluto ou universo em desordem. Essa leitura foi reforçada por traduções que confundem ruína com malignidade. Porém, a expressão hebraica aponta para outro cenário: não ausência, mas estágio anterior à habitação — o campo onde a voz divina irá operar.

“E a terra era tohu va-bohu, e trevas estavam sobre a face do abismo...”
Bereshit 1:2 | Texto Massorético

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Base textual

📘 Texto Hebraico:

וְהָיְתָה הָאָרֶץ תֹּהוּ וָבֹהוּ
V'ha’yetah ha’aretz tohu va’bohu

“E a terra era desolada e vazia…”

  • Tohu (תֹּהוּ) – “desolação”, “vazio”, “inabitável” – Strong’s H8414 | subst. masc. sing.

  • Bohu (בֹּהוּ) – “vazio”, “vácuo”, “sem conteúdo” – Strong’s H922 | subst. masc. sing.

  • Verbo hayetah (הָיְתָה) – “era/estava” – Strong’s H1961 | qal, perfeito, 3ª fem. sing.

  • “Aretz” – a terra – substantivo com artigo definido (הָ), indicando totalidade visível.

📘 LXX:

ἡ δὲ γῆ ἦν ἀόρατος καὶ ἀκατασκεύαστος

“E a terra era invisível e não estruturada.” – Gn 1:2, Codex Vaticanus

A Septuaginta oferece uma leitura mais filosófica: “aóratos kai akataskéuastos” (invisível e incompleta), mostrando que mesmo os tradutores gregos reconheciam uma realidade existente, mas ainda não funcional.

Origem da distorção

O termo tohu foi gradualmente reinterpretado sob influência grega e gnóstica como “caos” absoluto. Autores medievais — influenciados por Agostinho e Platão — leram o verso como se Elohim estivesse criando a partir do nada absoluto (ex nihilo). No entanto, a Bíblia hebraica nunca apresenta o caos como força rival ou o “nada” como cenário. O que há é uma terra sem função estabelecida.

Tohu não é destruição. É terreno aguardando instrução.

Em Isaías 45:18, o mesmo termo é explicitamente negado:

“Ele não criou [a terra] para ser tohu, mas para ser habitada.”

Impacto atual

A compreensão equivocada de tohu como “caos maligno” gerou doutrinas dualistas, onde o mundo físico é visto como corrupto desde a origem. Esse erro alimenta visões escapistas e desprezo pela criação material. Mas o texto de Bereshit ensina o contrário: a criação é boa — desde que instruída.

O Espírito pairava sobre as águas. O caos não era ameaça — era cena de preparação.

A Ruach Elohim não combate o tohu. Ela paira sobre ele.

Evidência negligenciada

Nos Manuscritos do Mar Morto (ex: 1QH – Hodayot), encontramos paralelos literários ao tohu como linguagem de abandono ou exílio espiritual, e não como destruição demoníaca. Também no Targum Pseudo-Jonathan, a frase é expandida:

“E a terra era desolada, abandonada de habitantes, e trevas...”

Isso confirma a visão do tohu como condição temporária, não antagônica à criação.

Retorno à aliança

Ao restaurar o sentido de tohu, restauramos também a esperança: o que está sem forma, está preparado para a palavra. Há desordens que são campos férteis para recomeços. O Espírito de Elohim não se ausenta do vácuo — Ele paira.

“A terra era tohu...” — e mesmo assim, o Espírito estava lá.

Esse é o mapa da aliança: Elohim não rejeita o vazio — Ele fala nele.


Fontes, glossário e morfologia

TermoTraduçãoStrong’sMorfologiaReferência
TohuDesolado / sem funçãoH8414Subst. masc. sing.Gn 1:2; Is 45:18
BohuVazio / sem conteúdoH922Subst. masc. sing.Gn 1:2
RuachFôlego / Sopro / EspíritoH7307Subst. fem. sing.Gn 1:2
HayetahEra / estavaH1961Verbo qal, perf., 3fsGn 1:2
AóratosInvisívelAdj. gregoLXX Gn 1:2

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