“No princípio criou Deus os céus e a terra.” A frase inaugural de Gênesis 1:1 é um estalo narrativo, não um carimbo de data. Em hebraico, berêʾšît (בְּרֵאשִׁית, “no princípio”) não traz artigo definido, sugerindo um começo de ordem, não “o” início absoluto do ser. É um portal literário que enquadra o restante — a transformação do tōhû vāvōhû (tohu va-bohu, תהו ובהו, “sem forma e vazia”) em cosmos habitável.
A reportagem que segue toma a Bíblia como fonte central, e investiga com filologia (hebraico, aramaico, grego), crítica textual (Massorético, Septuaginta, Pentateuco Samaritano, Manuscritos do Mar Morto) e contexto antigo. O objetivo não é “forçar” o texto a dar uma data, mas perguntar: o que o texto permite dizer com rigor?
Ao longo do dossiê, termos técnicos e originais serão explicados entre parênteses, para que leigos e pesquisadores possam acompanhar o raciocínio e, no fim, voltar ao texto bíblico sem intermediários.
O que a Bíblia pergunta — e o que não pergunta
A Bíblia descreve a criação, mas não “data” a criação. Gênesis 1 e 2 são ricos em estrutura, paralelismos e vocabulário técnico; pobres, porém, em marcadores cronológicos absolutos. Não há referência a reinados, eclipses, olimpíadas ou eras astronômicas que permitam converter narrativa em calendário.
Quando cronologias aparecem, elas servem a propósitos teológicos e identitários. As “toldot” (תּוֹלְדֹת, fórmulas de “gerações”, cf. Gn 2:4; 5:1; 10:1 etc.) organizam a memória do povo, não um almanaque universal. Sua função é ligar criação-promessa-aliança, não dar milimetricamente uma idade da terra.
Mesmo os trechos com números densos (Gênesis 5 e 11) focam em linha messiânica e continuidade humana após a queda e o dilúvio. A pergunta “quantos anos tem a terra?” é moderna; o texto responde outra: “quem é Deus, o que Ele fez, e quem somos nós nesse mundo?”.
Seis “dias”: o peso de yōm (יוֹם)
Em Gênesis 1, “dia” traduz yōm (יוֹם), palavra flexível: pode significar um ciclo claro-escuro de 24h, a parte clara do dia, ou um período indeterminado (“no dia da angústia”, “no dia do Senhor”). O hebraico antigo usa contexto para fixar nuance. Aqui, cada yōm vem numerado (primeiro, segundo…) e cercado por aoristas (“e foi… e fez… e chamou…”) e pelo refrão “tarde e manhã” (ʿerev וַיְהִי־עֶרֶב e bōqer וַיְהִי־בֹקֶר), o que sugere ritmo e repetição.
A numeração ordinal (yōm ʾeḥād, “dia um/primeiro”; yōm šēnî, “dia segundo” etc.) sinaliza sequência real, não “metáfora solta”. Por outro lado, a narrativa usa linguagem altamente literária: dias 1–3 formam espaços (luz/trevas; céus/águas; terra/vegetação); dias 4–6 preenchem esses espaços (luminares; aves/peixes; animais/homem). É um arranjo simétrico de ordem e plenitude.
Conclusão rigorosa: o texto descreve seis yāmîm reais no enredo; não define sua métrica em horas astronômicas. O leitor pode propor leituras “24 horas”, “dia-era” ou “analógica/literária”; o hebraico, por si, não obriga nenhuma delas — apenas proíbe que se roubem sequência e teleologia do relato.
“Criou” (barāʾ), “fez” (ʿāsâ), “formou” (yāṣar): verbos que contam tempo
Gênesis alterna três verbos-chave: barāʾ (בָּרָא, “criar”, ação divina singular, nunca com objeto humano como sujeito), ʿāsâ (עָשָׂה, “fazer, produzir”) e yāṣar (יָצַר, “formar, moldar”). Em 1:1, barāʾ apresenta o ato inaugural; nos dias seguintes, ʿāsâ e yāṣar detalham ordenação e modelagem.
Essa alternância ressalta processo sem exigir duração. O texto sinaliza que Deus tanto inaugura realidade quanto organiza e dá função. Em 2:7, o homem é “formado” do pó (ʿāp̄ār), linguagem de artesão; em 2:22, a mulher é “construída” (bānâ), outro verbo artesanal.
Resumo: a gramática sugere fases e camadas (inauguração, separação, preenchimento), mas não fornece cronômetro. O relógio é teológico: seis dias de obra, um de descanso — padrão que retornará na ética de Israel (Êx 20:8-11).
O relógio antes do sol: “tarde e manhã” sem astros
Um problema clássico: como há “tarde e manhã” nos dias 1–3 se o sol surge no dia 4? Em hebraico, ʿerev (“entardecer”) e bōqer (“amanhecer”) marcam alternância, não exigem sol por definição. O refrão molda ritmo litúrgico e pedagógico: trabalhos marcados por limites; fins e reinícios.
Além disso, o versículo 1:3 (“haja luz”) distingue “luz” (ʾôr) de “luminares” (mĕʾōrōt) em 1:14-18. A “luz” pode ser entendida como ordem/condição de visibilidade (não necessariamente fótons provenientes do sol) e os luminares, como reguladores de sinais, festas e tempos.
O texto, portanto, sustenta o ritmo sem astros iniciais. A intenção é teológica: o sol não é divindade; vem depois, por decreto do Criador. Cronometria astronômica, novamente, não é o alvo do narrador.
Genealogias que contam o tempo: Gênesis 5 e 11
Aqui entram números. Gênesis 5 (Adão a Noé) e 11 (Sem a Abraão) listam idades ao gerar um descendente e a vida total. Mas há variantes textuais significativas:
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Texto Massorético (TM) — base da maioria das versões hebraicas modernas.
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Septuaginta (LXX, grego) — frequentemente adiciona 100 anos às idades de geração em várias gerações, ampliando a cronologia em ~1.300–1.500 anos.
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Pentateuco Samaritano (SP) — concorda às vezes com LXX, às vezes com TM, e tem peculiaridades próprias.
Essas diferenças produzem linhas do tempo distintas. Cronógrafos como Ussher (séc. XVII), trabalhando com o TM, propuseram criação por volta de 4004 a.C. Se a LXX for adotada, a mesma soma vai mais longe no passado. Não há consenso unívoco entre testemunhas antigas; isso impede usar Gênesis 5 e 11 como régua infalível para “idade da terra”.
Há “lacunas” nas genealogias?
O hebraico yālad (ילד, “gerar”) pode expressar ancestralidade ampla, não apenas “pai biológico imediato”. Comparando com outras genealogias bíblicas (cf. Mt 1, que omite nomes por estruturação teológica), é plausível que Gênesis 5 e 11 não sejam listas exaustivas, e sim linhas representativas.
Se há lacunas, somas diretas de anos deixam de ser “relógio”. Mesmo que alguém sustente genealogias fechadas, continua valendo o problema das variantes (TM x LXX x SP). Assim, o uso dessas listas para datar a criação é metodologicamente frágil.
O ponto teológico permanece: continuidade da humanidade, mortalidade após a queda, e preservação da linhagem da promessa. O texto cumpre esse propósito com alta competência — e não se dispõe a responder “quantos anos tem a terra?”.
Testemunhos antigos: estabilidade e variação
Manuscritos do Mar Morto (DSS) preservam fragmentos de Gênesis que confirmam, em geral, a estabilidade do conteúdo narrativo, mas não resolvem todas as cifras cronológicas onde TM, LXX e SP divergem.
A Septuaginta traduz rāqîaʿ (רָקִיעַ, “expansão/firmamento”) por stereōma (στερέωμα, “estrutura firme”), mostrando como termos cosmológicos foram vertidos a outro universo linguístico. Isso importa porque termos cosmológicos antigos não equivalem a categorias modernas (“atmosfera”, “espaço sideral”).
O Pentateuco Samaritano, preservado entre os samaritanos, mantém leitura própria do calendário do dilúvio e de certas idades. A coexistência de três famílias textuais antigas mostra que Deus preservou a mensagem; as cifras específicas, porém, circulam com variação real.
Resultado: a crítica textual confirma a confiabilidade da teologia do relato, ao mesmo tempo em que aconselha humildade cronológica.
“Terra” ou “terra”: ʾereṣ (אֶרֶץ) como planeta ou território
A palavra ʾereṣ pode significar o globo, um continente, a terra seca em contraste com mares, ou uma região específica (“terra de Canaã”). Em Gênesis 1, ʾereṣ começa como “solo/emersão” (1:10), depois pode abarcar totalidade. Nas narrativas posteriores, “toda a terra” muitas vezes é hipérbole relativa ao horizonte do narrador (ex.: “toda a terra vinha a José”, Gn 41:57).
Quando o leitor transfere automaticamente “ʾereṣ = planeta Terra em sentido moderno”, surgem extrapolações. A Bíblia comunica para um povo real, num mundo percebido em sua escala. Isso não diminui a veracidade; apenas define a linguagem de comunicação.
Logo, perguntas sobre “a idade do planeta” não estão no escopo semântico primário de muitos textos; a Bíblia trata do mundo humano diante de Deus.
Ecos canônicos: Êxodo 20:11, Salmo 90:4, 2 Pedro 3:8
Êxodo 20:11 explica o sábado: “em seis dias fez (ʿāsâ) YHWH os céus e a terra… e ao sétimo descansou”. A função é ética e litúrgica: trabalho-descanso como imitatio Dei. O texto ancora o ritmo humano no padrão da criação, sem quantificar cosmologia.
Salmo 90:4 (hebraico) e 2 Pedro 3:8 (grego) lembram a assimetria temporal: “mil anos são como um dia” (kī ʾeleph šānîm bĕʿênêkā kĕyōm ʾetmol; χίλια ἔτη ὡς ἡμέρα μία). Não é fórmula de conversão, mas princípio teológico (Deus não está preso ao nosso relógio).
O Novo Testamento mantém a confiança na criação e reitera: a questão central é o caráter e a promessa do Criador, não a calculadora de eras.
Diálogo com as ciências: conflito necessário ou falso dilema?
A ciência moderna estima ~4,5 bilhões de anos para a Terra (múltiplas linhas: decaimento radioativo, modelos estelares, geologia). A Bíblia, por sua vez, não fornece data. O conflito, então, não é “Bíblia x ciência”, mas leituras específicas da Bíblia x modelos científicos.
Há leitores que adotam “dias de 24h” e, coerentemente, criticam métodos de datação; há quem reconheça que o texto não data e, portanto, vê compatibilidade possível com longas eras. Em ambos os casos, a pergunta decisiva é hermenêutica (ciência da interpretação): o que o autor antigo disse e quis dizer?
Este dossiê não prescreve uma posição científica; ele estabelece o limite e a liberdade textual: a Escritura é sólida ao narrar quem, por quê e para quê. O “quando” absoluto da Terra não é objeto da revelação.
Síntese reveladora — o que se pode afirmar com segurança
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Gênesis comunica uma criação real, ordenada, boa, por ato de YHWH; nega caos e panteões.
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O enredo usa “seis dias” sequenciais e “um descanso” como molde da vida humana; não fornece escala astronômica.
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Genealogias são teológicas e possuem variantes antigas (TM/LXX/SP), inviabilizando um “relógio único”.
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A crítica textual confirma a mensagem, ao mesmo tempo que desautoriza dogmatismos cronológicos.
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Portanto, datar a terra a partir da Bíblia excede o que o texto promete entregar; o compromisso bíblico é com a verdade teológica e histórica da criação, não com um número.
Fechamento provocativo — volte ao hebraico e leia por si
A Bíblia não é silenciosa: ela fala alto sobre quem criou e para quê. É parcimoniosa, porém, sobre quando em medidas nossas. Isso não é lacuna; é foco. Antes de importar debates modernos para dentro de Gênesis, leia o texto original (com boas notas), observe yōm, barāʾ, ʿāsâ, yāṣar, ʾereṣ, e repare no refrão “tarde e manhã”. Deixe que a Escritura conduza a pauta.
A idade da terra pode ser debatida com dados geológicos; a Bíblia pede outra decisão: reconhecer o Autor e ordenar a vida ao seu descanso. O convite é direto: abra o texto, sem intermediários — a Escritura resiste ao escrutínio e nos obriga a pensar melhor do que pensávamos.

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