Na cena do Éden, quando confrontada por Elohim, Eva responde com uma frase que moldou séculos de doutrina:
“A serpente me enganou, e eu comi.”
Mas a frase hebraica original merece uma análise rigorosa:
וַתֹּאמֶר הָאִשָּׁה הַנָּחָשׁ הִשִּׁיאַנִי וָאֹכֵל
vattómer ha-isháh: hanachásh hisshíʾaní vaʾokhél
O verbo-chave aqui é הִשִּׁיא (hisshíʾ) — uma forma intensiva (piel) do verbo נָשָׁא (nasháʾ). Diferente de “mentir” ou “seduzir” no sentido erótico, esse termo carrega a conotação de induzir ao erro por meio de manipulação mental. É o único uso dessa forma verbal em todo o Tanakh.
Leia também:
- A serpente do Éden tinha nome? Investigação filológica de Gênesis 3
- Adão pecou com consciência? O silêncio que condena
- Quem mentiu no Éden? Contradições entre Gênesis e 1 Timóteo
A serpente enganou ou iludiu? O peso semântico de הִשִּׁיא
O radical נשא (n-sh-ʾ) possui um campo semântico curioso. Em qal, pode significar “levantar” ou “levar”. Mas na forma piel — hisshíʾ — adquire um sentido raro: induzir alguém a uma conclusão falsa, dar falsas esperanças, desviar do juízo correto.
No HALOT, encontramos:
“to deceive, lead astray, delude (esp. morally)”
Esse termo não aparece em nenhum outro momento da Torá ou dos Ketuvim, e seu paralelo mais próximo está em 2 Reis 19:10, onde aparece a ideia de “não se deixar enganar” (אַל-יַשִּׁיאךָ):
"Não te engane teu Elohim..."
Assim, a palavra usada por Eva implica que ela não foi uma cúmplice consciente, mas uma vítima de um processo mental de ilusão — uma espécie de gaslighting primitivo.
O verbo usado por Eva aparece mais tarde — e sempre em contextos espirituais
O termo הִשִּׁיא surge de novo, com peso teológico, em Jeremias 20:7:
פִּתִּיתָנִי יְהוָה וָאֵפָּת... הִשְּׁאַנִי
“Persuadiste-me, YHWH, e eu fui persuadido... Foste mais forte do que eu, e prevaleceste.”
Aqui, o profeta usa a mesma raiz para descrever como foi “vencido” emocionalmente por uma força maior. A associação com Gênesis 3:13 é inevitável: a ação da serpente foi mais que um simples engano — foi uma manipulação profunda da consciência.
Há uma contradição com a leitura paulina de 1 Timóteo 2:14?
O autor da epístola conhecida como 1 Timóteo afirma:
“E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão.”
(καὶ Αδὰμ οὐκ ἠπατήθη, ἡ δὲ γυνὴ ἐξαπατηθεῖσα ἐν παραβάσει γέγονεν)
O verbo grego usado — ἐξαπατάω (exapatáō) — significa “enganar completamente”. Contudo, o foco parece ser moral, não apenas cognitivo. A escolha dessa palavra ecoa a interpretação de Eva como vítima de ilusão, não autora de rebeldia deliberada.
No entanto, é essencial notar que a carta aos Timóteos é tida como deuteropaulina por muitos estudiosos — possivelmente escrita por discípulos de Paulo no final do século I. Isso torna a interpretação posterior, não original ao episódio de Gênesis.
Eva foi enganada... Mas Adão não? O que o texto sugere sobre a consciência da transgressão
O relato de Gênesis 3 mostra que Adão comeu o fruto sem sequer dialogar com a serpente. A mulher, sim, responde, pondera, hesita, avalia.
Em Gênesis 3:6:
“E viu a mulher que a árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu.”
Nada sugere resistência ou surpresa por parte de Adão. Ele aceita o fruto sem questionamento — o que levanta a hipótese de consentimento pleno, não ilusão.
O texto sugere que Eva foi “enganada” (הִשִּׁיא), mas Adão simplesmente cedeu. Isso lança uma luz nova sobre a construção patriarcal posterior da culpa.
A estrutura do hebraico expõe o agente real do erro
Observe a ordem da frase de Gênesis 3:13:
הַנָּחָשׁ הִשִּׁיאַנִי וָאֹכֵל
“A serpente me enganou, e [então] comi.”
A ação da serpente é anterior e causal à ação de Eva. Não há espaço para uma leitura de cumplicidade consciente. Há uma clara sequência de causa e efeito — um dado linguístico fundamental.
A partícula ו (vav consecutivo) entre “enganou” e “comeu” (וָאֹכֵל) implica sequência lógica, não apenas cronológica. É como dizer:
“Fui enganada. Por isso, comi.”
O nome da serpente nunca é revelado — e isso importa
O texto nunca identifica a serpente como Satanás. Isso só acontece séculos depois, em textos intertestamentários como o Livro de Sabedoria 2:24 e o Apocalipse 12:9. No Gênesis original, ela é apenas הַנָּחָשׁ — o animal mais astuto.
Essa ausência de nome próprio indica que o texto hebraico quer enfatizar o fenômeno da ilusão, não a identidade de um tentador externo. O foco está na manipulação da linguagem, não no misticismo.
E se Eva disse a verdade?
A crítica moderna — especialmente a filologia do texto massorético — sugere que Eva não mentiu nem omitiu. Ao contrário: sua fala é direta, sintética e morfologicamente correta.
O verbo הִשִּׁיא é confissão de vulnerabilidade, não desculpa. E isso muda tudo.
Bloco Técnico
Texto original (Gênesis 3:13)
וַיֹּאמֶר יְהוָה אֱלֹהִים לָאִשָּׁה מַה-זֹּאת עָשִׂית וַתֹּאמֶר הָאִשָּׁה הַנָּחָשׁ הִשִּׁיאַנִי וָאֹכֵל
Transliteração (SBL)
Vayyómer YHWH Elohim la-isháh: mah zóʾt ʿasít? Vattómer ha-isháh: hanachásh hisshíʾaní vaʾokhél
Tradução literal interlinear
E disse YHWH Elohim à mulher: “O que é isto que fizeste?” E disse a mulher: “A serpente me iludiu, e eu comi.”
Análise morfológica
-
הִשִּׁיאַנִי (hisshíʾaní)
-
raiz: נ-ש-א
-
binyan: piel (intensivo)
-
tempo: perfeito
-
pessoa: 3ª singular + sufixo pronominal 1ª pessoa singular
-
significado: “enganou-me”, “me iludiu”
-
Grau de confiabilidade textual: A
Baseado no Texto Massorético (Leningrado Codex), com paralelos sem variação nos manuscritos do Mar Morto para Gênesis 3
Referências
-
HALOT: vol. II, p. 707, ערך נָשָׁא
-
BDB: p. 674
-
Strong’s: H5377
-
NA28 para 1Tm 2:14
-
LXX Rahlfs: Γένεσις 3:13 — Ὁ ὄφις ἠπάτησέν με

Comentários
Postar um comentário